Muito se tem falado da carreira médica e da necessidade de a reforçar para que o SNS consiga sobreviver. O acordo intercalar só para 2024, com o Sindicato Independente dos Médicos, será insuficiente para resolver os problemas atuais mas pelo menos sinaliza alguma melhoria tendo em conta a alternativa de aumento apenas de 3%, face à perda de poder de compra das duas últimas décadas. No entanto, a quebra marcada nas escolhas de vagas de especialidade, que originou o facto inédito de vagas não ocupadas em cerca de um terço das especialidades, mostrou bem o momento crítico que se vive na captação de quadros qualificados e na sustentabilidade dos serviços.

Existem serviços que acusarão muito a falta dos médicos internos e, em alguns casos, esse é mesmo o motivo da não escolha. A dependência exagerada dos médicos internos, usados para tapar buracos de escalas, por vezes sob pena (e ameaça) de não poderem fazer estágios ou mesmo usarem as possíveis comissões gratuitas (para formação), foi mais evidente durante estes dois últimos meses da colocação das minutas das 150 horas. Gera-se um efeito bola de neve de pouca atractibilidade destas vagas de formação em locais com estas características e, também, pouca ou nenhuma vontade de permanecer na instituição. Aliás, a posição de vulnerabilidade dos médicos internos infelizmente potencia situações de diversas formas de assédio e a própria Ordem dos Médicos tem que ser mais proactiva para possibilitar denúncias consequentes, com proteção e alternativas, para além dos próprios estabelecimentos e serviços.

Amiúde menciona-se a abertura de mais vagas no ensino pré-graduado, mas a “mangueira” está furada mais à frente. Neste momento, por ausência de interesse em vagas de especialização e, já há mais tempo, na incapacidade de retenção de profissionais pelo SNS.

A agravar esta situação, fica a abertura de vagas à revelia de critérios de idoneidade e sem noção de longo prazo, com a perspetiva de agravamento de dissonâncias de acordo com a mais recente alteração dos estatutos já aprovada na Assembleia da República.

Os médicos internos mencionam também que o internato médico se tem complicado pelos custos acrescidos da formação contínua, não havendo apoio suficiente face aos custos. Em termos económicos também não escapam à pressão imobiliária e custo de vida em grandes centros, com o exemplo máximo das vagas de Lisboa serem condicionadas a priori por esses factores.

O salário, face à responsabilidade e alternativas, justifica uma boa parte do problema e, face a um sistema patológico que não paga o suficiente aos seus próprios especialistas e médicos internos, mas está disponível para pagar mais a médicos tarefeiros, os jovens médicos apenas seguem os incentivos. Aliás, incentivos que podem ser especialmente perniciosos, agravando não só iniquidades entre profissionais, como também a própria prática clínica.

Um médico interno do 3.º, 4.º ou 5.º ano já terá uma experiência acumulada que não se coaduna com os vencimentos praticados e a carreira médica tem aqui um dos seus pontos mais frágeis: a não diferenciação e reconhecimento progressivos dos últimos anos de especialidade, à medida que a responsabilidade e papel nos serviços aumenta. As gerações mais novas têm, também, um maior desejo de equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Um médico é colocado como especialista já perto dos 30 anos, com variações entre especialidades. A vida pessoal e familiar acaba por ser dificultada pelas necessidades de trabalho, formação e, claro, horas extra.

No meio deste cocktail, não é surpresa que o estudo sobre burnout feito pelo Conselho Nacional do Médico Interno revele valores como: 25% dos internos em burnout (com exaustão emocional, despersonalização e sem realização pessoal); 55% em risco de burnout; 35% está/esteve com acompanhamento de psicólogo/psiquiatra. Nada disto é propriamente novidade. Pegando na falta de escolhas, por exemplo da especialidade de Medicina Interna, as queixas sob a pressão exercida e falta de condições de trabalho já ecoavam há muito.

No contexto da quebra que está já a ocorrer entre o SNS e a oferta no sector privado, as piores condições de trabalho (agravadas em bola de neve pela necessidade de horas extras cada vez mais numerosas pela saída de profissionais) e a falta de investimento em equipamentos (e na inovação tecnológica) continuarão a oferecer condições mais diferenciadas de formação e exercício fora do SNS.

Algo que poderia e deveria ter estado a ocorrer simultaneamente às negociações sindicais, com envolvimento de outros parceiros, atempadamente, 20 meses atrás, sem ser necessário ter chegado ao ponto atual, era uma conversa estruturada sobre a valorização do valor de cada hora médica através do investimento em condições de trabalho, automatização e também no task-shifting com outros profissionais, com a sua devida valorização e dotação numérica. Em jeito de brincadeira, um colega recém-saído do SNS dizia que “iria sentir saudades de abanar o toner”. É uma rábula repetida até à exaustão: horas perdidas com impressoras. Tarefas repetitivas, falhas básicas de ferramentas de trabalho: desperdício. Assinale-se que a Direcção Executiva tem conseguido avançar com uma agenda importante de retirada de burocracia do sistema.

Recordem-se, de forma amarga, ataques aos médicos internos na sua dignidade profissional, como se fossem de menor importância quando é de conhecimento generalizado entre os profissionais de saúde que são eles que seguram o SNS em muitos aspetos do seu funcionamento contínuo.

No último Congresso Nacional da Ordem dos Médicos, falou-se na necessidade de uma nova carreira médica. Reconhecendo essa necessidade, é mais do que avisado que falemos num novo Internato Médico para que isso seja possível, retirando as devidas consequências de que parte importante da coluna vertebral do SNS se sustenta nesse período fundamental da formação médica.

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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Médicos Internos: as vértebras do SNS

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19.12.2023

Muito se tem falado da carreira médica e da necessidade de a reforçar para que o SNS consiga sobreviver. O acordo intercalar só para 2024, com o Sindicato Independente dos Médicos, será insuficiente para resolver os problemas atuais mas pelo menos sinaliza alguma melhoria tendo em conta a alternativa de aumento apenas de 3%, face à perda de poder de compra das duas últimas décadas. No entanto, a quebra marcada nas escolhas de vagas de especialidade, que originou o facto inédito de vagas não ocupadas em cerca de um terço das especialidades, mostrou bem o momento crítico que se vive na captação de quadros qualificados e na sustentabilidade dos serviços.

Existem serviços que acusarão muito a falta dos médicos internos e, em alguns casos, esse é mesmo o motivo da não escolha. A dependência exagerada dos médicos internos, usados para tapar buracos de escalas, por vezes sob pena (e ameaça) de não poderem fazer estágios ou mesmo usarem as possíveis comissões gratuitas (para formação), foi mais evidente durante estes dois últimos meses da colocação das minutas das 150 horas. Gera-se um efeito bola de neve de pouca atractibilidade destas vagas de formação em locais com estas características e, também, pouca ou nenhuma vontade de permanecer na instituição. Aliás, a posição de vulnerabilidade dos médicos internos infelizmente potencia situações de diversas formas de assédio e a própria Ordem dos Médicos tem que ser mais proactiva para possibilitar denúncias consequentes, com proteção e........

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