Os períodos eleitorais são momentos pujantes de discussão política, embora contaminados, aqui e além, por alguma demagogia oportunista, que apenas empobrece e desqualifica o debate.

Numa perspetiva de análise às diferentes propostas eleitorais, diria que existem duas correntes dominantes em termos de bases programáticas: a primeira, mais fácil e tentadora, enraizada em medidas avulsas dirigidas a problemas mundanos embora sem grande fundamentação técnica ou viabilidade económica; a segunda, mais rica, porém menos sedutora, elege na ideologia o seu campo de batalha predileto.

Sejamos honestos: se por um lado as pessoas anseiam por respostas aos seus dilemas quotidianos, por outro lado, problemas complexos raramente se resolvem com soluções simples, sobretudo em tempos em que o populismo fácil granjeia adeptos e abunda nas redes sociais. Por isso, dispensar a ideologia do debate político é empobrecer o mesmo, deixando que a espuma dos dias preencha a agenda mediática. Mais do que soundbytes apelativos, a ideologia assume relevância porque é a discussão que nos define enquanto comunidade, que prioriza as nossas escolhas e elenca preocupações, em função das quais se desenham e implementam políticas públicas robustas e ambiciosas.

Um dos temas que irá inevitavelmente marcar as próximas semanas de campanha eleitoral é a saúde, designadamente o acesso a serviços de saúde ou a forma como prestamos e financiamos cuidados de saúde à população. Pilar essencial do Estado social conforme o conhecemos, é sempre um tema que convoca as mais diversas paixões, acentuando o caráter securitário que o conceito de saúde ainda representa para muitos cidadãos, sobretudo as franjas populacionais mais vulneráveis e dependentes de serviços públicos resilientes e eficazes.

E é na saúde que o debate ideológico deve preceder a prescrição de quaisquer receitas milagrosas que subitamente resolvam todos os problemas do setor. Que Estado social, designadamente que SNS queremos no ano em que se assinalam 50 anos de abril? Este deveria ser a pergunta que norteia qualquer discussão acerca de política de saúde pois honrar o legado de Arnaut é também, mais que qualquer retórica mobilizadora, ter a clarividência de reconhecer a modificação profunda que se imprimiu ao tecido social do país, o novo paradigma de evolução tecnológica e inovação terapêutica, os novos modelos de organização do trabalho, entre tantas outras variáveis que as últimas décadas alteraram substancialmente.

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Sim, é possível reformar o Serviço Nacional de Saúde!

Como? Preservando os seus valores fundacionais – universalidade, generalidade e gratuitidade tendencial, tendo a humildade de reconhecer o muito que se alterou desde 1979, identificando novos desafios e oportunidades.

Assim, refundar o Serviço Nacional de Saúde não implica o seu impiedoso desmantelamento, nem devemos tolerar a sua degradação reputacional à boleia de cadernos de encargos corporativistas ou de uma comunicação social que faz da mediatização voraz a sua sustentação económica. Refundar o SNS significa compreendermos que hoje, fruto do inverno demográfico, a doença crónica e os internamentos sociais representam um desafio hercúleo para qualquer sistema de saúde ou mecanismos de proteção social. Refundar o SNS exige compreendermos que apesar de termos a mesma longevidade que os povos escandinavos não temos a mesmo valor de anos de vida potencialmente saudáveis. Refundar o SNS obriga a que olhemos para a prevenção da doença e a saúde mental com outro grau de compromisso, muito para além de qualquer discurso proclamatório. Refundar o SNS deve impor a necessidade de planear com caracter multidisciplinar e plurianual ao invés de acudir de forma providencial às crises episódicas do momento. Refundar o SNS implica acautelar a sua sustentabilidade e usufruto às gerações vindouras, estudando a diversificação do seu financiamento e retendo o talento indispensável a uma melhor gestão do conhecimento.

É com elevada perplexidade que assistimos à tentativa de converter, numa perspetiva kafkiana, o SNS numa agência emissora de vouchers, ignorando por completo a sua dimensão sociológica e desrespeitando princípios técnicos essenciais a uma prestação de cuidados de saúde eficientes. Mais a mais, fomenta modelos de indução artificial da procura, reduzindo o Estado a um agente single payer que ignora os conflitos de interesse e torna o setor privado num predador (ainda mais) sôfrego pelo financiamento público. Ao tornar o SNS num balcão onde se recebe um vale para uma consulta de oftalmologia como quem levanta a sua pensão num posto dos correios, ignora-se o princípio da continuidade de cuidados e converte-se a medicina numa ciência meramente casuística, espartilhada em atos isolados que não se articulam de forma racional e coerente entre si.

Corria o ano de 1385, a propósito da aclamação do Mestre de Avis como Rei de Portugal, e especula-se que Álvaro Pais, seu vassalo, terá instigado a tomada do poder com o seu célebre conselho: “Dai aquilo que vosso não é, prometei o que não tendes e perdoai a quem não vos fez mal”. A história por vezes assume um comportamento cíclico e repete-se no tempo; seja em 2024 ou em pleno século XIV, há alianças falaciosas que corroem as instituições democráticas ao prometer o fácil e simples, manipulando estados de alma com argumentos irracionais e artifícios atrativos.

A demagogia grassa entre nós, saibamos combatê-la. Entretanto sai um voucher para a Dona Amélia que acumula 25 pontos em cartão.

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O legado de Arnaut

9 10
28.01.2024

Os períodos eleitorais são momentos pujantes de discussão política, embora contaminados, aqui e além, por alguma demagogia oportunista, que apenas empobrece e desqualifica o debate.

Numa perspetiva de análise às diferentes propostas eleitorais, diria que existem duas correntes dominantes em termos de bases programáticas: a primeira, mais fácil e tentadora, enraizada em medidas avulsas dirigidas a problemas mundanos embora sem grande fundamentação técnica ou viabilidade económica; a segunda, mais rica, porém menos sedutora, elege na ideologia o seu campo de batalha predileto.

Sejamos honestos: se por um lado as pessoas anseiam por respostas aos seus dilemas quotidianos, por outro lado, problemas complexos raramente se resolvem com soluções simples, sobretudo em tempos em que o populismo fácil granjeia adeptos e abunda nas redes sociais. Por isso, dispensar a ideologia do debate político é empobrecer o mesmo, deixando que a espuma dos dias preencha a agenda mediática. Mais do que soundbytes apelativos, a ideologia assume relevância porque é a discussão que nos define enquanto comunidade, que prioriza as nossas escolhas e elenca preocupações, em função das quais se desenham e implementam políticas públicas robustas e ambiciosas.

Um dos temas que irá inevitavelmente marcar as próximas semanas de campanha eleitoral é a saúde, designadamente o acesso a serviços de saúde ou a forma como........

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