A concretização do Plano Nacional de Saúde Mental tem sido sistematicamente adiada. Apesar disso, assistimos a avanços sem precedentes desde 2019, quando o Ministério da Saúde assumiu a saúde mental como uma prioridade efetiva.

O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) direcionou para a saúde mental – cronicamente desinvestida – uma fatia relevante que garantiu a construção de novas instalações para internamento e ambulatório de vários serviços de Psiquiatria, o melhoramento e a ampliação de outros, a constituição de quarenta equipas comunitárias de saúde mental e a expansão da Rede de Cuidados Continuados de Saúde Mental. A nova Lei de Saúde Mental colocou-nos na vanguarda da defesa dos Direitos Humanos da pessoa com experiência de doença mental.

O desalinhamento da organização nacional com as tendências internacionais era evidente e convocava para uma transformação dos cuidados no âmbito da saúde mental que assegurasse acessibilidade, proximidade, qualidade, respeito pelos direitos humanos e pela dignidade de cada pessoa, justiça e eficiência na gestão de recursos.

A publicação do Decreto-Lei 113/2021 definiu a nova organização dos cuidados de saúde mental no âmbito do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e criou a Coordenação Nacional para as Políticas de Saúde Mental e as Coordenações Regionais de Saúde Mental que se assumem como agentes fundamentais na implementação coordenada de toda a reforma.

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A constituição de Serviços Locais de Saúde Mental, de natureza multidisciplinar e organizados em setores geodemográficos com forte ligação aos cuidados de saúde primários, antecipou o modelo de organização de todo o SNS em Unidades Locais de Saúde (ULS). Ao mesmo tempo, a constituição pela Direção Executiva do SNS de uma rede de serviços de urgência, de proximidade, articulados e dimensionados para as necessidades efetivas, permitiu libertar recursos para a atividade programada, uma opção geradora de ganhos em saúde na gestão da doença mental crónica.

Este modelo de intervenção em equipas multidisciplinares coloca a pessoa — e não o profissional — no centro do processo de prestação de cuidados de saúde, evitando deslocações excessivas, desnecessárias e geradoras de desperdício de recursos. Num modelo desarticulado, centrado em grupos profissionais, o doente tem que percorrer as diferentes “capelas” sem consideração pelas suas reais necessidades. Não é aceitável que uma pessoa venha ao hospital à segunda-feira para estar com o enfermeiro, à quarta-feira para a consulta de psiquiatria, na semana seguinte para a consulta de psicologia e na outra para a consulta com o serviço social.

A prestação de cuidados centrados na pessoa implica que as equipas se organizem para estar mais perto dos pacientes e garantirem, através do terapeuta de referência, a gestão integrada de cada situação, fazendo uso das diferentes valências disciplinares envolvidas. É fundamental que os serviços locais de saúde mental atuem na comunidade, articulando de forma efetiva com as estruturas que ali contribuem para a promoção da saúde e a prestação de cuidados.

Ao mesmo tempo que garante o acesso às intervenções médicas, de enfermagem, de psicologia, de terapia ocupacional e de serviço social que tratam a maior parte das patologias, a rede de serviços de saúde mental tem que prever respostas de elevada diferenciação, organizadas regionalmente em articulação com universidades e unidades de investigação científica, para assegurar o acesso a intervenções diferenciadas dirigidas às apresentações mais graves e resistentes da doença psiquiátrica.

O tempo urge e o momento de concretizar a ansiada reforma da saúde mental é agora. A nova Lei de Saúde Mental, centrada na proteção dos Direitos Humanos, deu um contributo fundamental para a prestação de cuidados de saúde mental baseados na evidência e centrados na pessoa. A construção de internamentos nos Serviços Locais de Saúde Mental está a aproximar os cuidados das pessoas. Neste contexto, o acesso das pessoas com doença psiquiátrica aos recursos disponíveis tem que ser uma prioridade, não podendo ser secundarizado em função das agendas de cada sector ou grupo profissional.

Ninguém compreenderia que a doença oncológica não tivesse acesso prioritário aos recursos cirúrgicos disponíveis num hospital. Do mesmo modo, os recursos de saúde mental disponíveis têm que dar prioridade às situações de doença psiquiátrica grave e incapacitante, sobretudo nos momentos críticos em que a intervenção terapêutica tem o potencial de alterar o curso natural da doença.

A doença mental foi durante muito tempo invisível na nossa sociedade. O trabalho realizado por muitas e por muitos ao longo da última década para aumentar a sua visibilidade não pode ser aproveitado para uma espécie de psicologização e psiquiatrização de quase tudo, incluindo o sofrimento e a adaptação normais, que tem como consequência última a perigosa banalização e desvalorização da doença psiquiátrica.

A jornada é longa, difícil e não está isenta de riscos. Mas não podemos falhar às pessoas com experiência de doença mental. O Plano Nacional de Saúde Mental tem que continuar a ser implementado. Agora ou agora.

Pedro Morgado é médico especialista em Psiquiatra no Hospital de Braga e professor na Escola de Medicina da Universidade do Minho. É Coordenador Regional de Saúde Mental da Administração Regional de Saúde do Norte. Em 2021, venceu a primeira edição do FLAD Mental Health Award.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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Reforma da Saúde Mental: agora ou agora

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28.12.2023

A concretização do Plano Nacional de Saúde Mental tem sido sistematicamente adiada. Apesar disso, assistimos a avanços sem precedentes desde 2019, quando o Ministério da Saúde assumiu a saúde mental como uma prioridade efetiva.

O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) direcionou para a saúde mental – cronicamente desinvestida – uma fatia relevante que garantiu a construção de novas instalações para internamento e ambulatório de vários serviços de Psiquiatria, o melhoramento e a ampliação de outros, a constituição de quarenta equipas comunitárias de saúde mental e a expansão da Rede de Cuidados Continuados de Saúde Mental. A nova Lei de Saúde Mental colocou-nos na vanguarda da defesa dos Direitos Humanos da pessoa com experiência de doença mental.

O desalinhamento da organização nacional com as tendências internacionais era evidente e convocava para uma transformação dos cuidados no âmbito da saúde mental que assegurasse acessibilidade, proximidade, qualidade, respeito pelos direitos humanos e pela dignidade de cada pessoa, justiça e eficiência na gestão de recursos.

A publicação do Decreto-Lei 113/2021 definiu a nova organização dos cuidados de saúde mental no âmbito do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e criou a Coordenação Nacional para as Políticas de Saúde Mental e as Coordenações Regionais de Saúde Mental que se assumem como agentes fundamentais na implementação coordenada de toda a reforma.

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A constituição de Serviços........

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