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Ovídio e as metamorfoses da recusa

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09.11.2025

A consciência começa onde termina o gesto, naquele preciso lugar onde o corpo, esperando encontrar outro, encontra apenas ar: o espaço que se abre então – esse vazio – é o pensamento. A recusa do outro não é apenas uma ferida de amor – é a origem da interioridade. Aquilo que não nos toca transforma-se no que temos de imaginar.

Lucrécio afirmava que o mundo é um conjunto de átomos em queda: convergem, divergem, agonizam e, nessa queda infinita, um pequeno desvio – clinamen, chamava-lhe ele – dá origem a todas as coisas. A recusa faz as vezes, no coração humano, de idêntico desvio: uma guinada na colisão calorosa dos corpos. É dela que surge a autoconsciência, a solidão, a linguagem, pois aquele que é recusado descobre que o mundo tem um lado de fora. Antes, vivia na continuidade entre carne e respiração; agora, olha para o seu corpo como para algo que ficou para trás, cora, nomeia-se. No princípio, era a pele; depois veio o rubor.

Et erubescebam me ipsum – escrevia Agostinho na noite do seu desejo, e não será necessário um doutoramento em Clássicas para perceber que não se trata de modéstia, mas metafísica: a vergonha é a súbita ruptura entre o que é sentido e o que é visto. A consciência é essa fenda: a invisível ferida da visibilidade. O rubor não é confissão, mas divisão: o sangue sobe ao rosto para mostrar o recuo da alma. A recusa de um outro torna-se recusa de si mesmo. O eu nasce da vergonha, não do conhecimento: muito antes de dizermos “Eu penso”, já silenciosamente tínhamos dito “Eu não posso ser esta carne”.

Chamavam-lhe pudor, os antigos – curioso vocábulo que significava afinal modéstia, terror, reverência, reverberação. Não virtude, mas vertigem, um movimento de recuo perante aquilo que, mudando e mudando, ultrapassa a nossa compreensão.

Quão precisados estamos de, como Ovídio, não descrever a metamorfose, mas habitá-la: para ele, a mudança não era um acontecimento, mas a própria gramática da existência. Cada criatura, cada desejo, cada ferida........

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