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Filomela e o tear do silêncio

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23.11.2025

Existe, nas margens do tempo, um espaço que não nomeamos jamais. Tocamo-lo levemente, atravessamo-lo sem o saber. É a sombra deixada por uma alegria demasiado intensa, ou o rasto indecifrável de uma palavra que não ousámos proferir. Esse espaço – essa lacuna – é o preciso lugar onde se acumulam os nossos fracassos. Não as falhas visíveis, as registadas pela história e que tranquilizam o juízo humano, mas as perdas mínimas, as perdas silenciosas, as perdas que cometemos por ignorância do nosso próprio valor.

Um dia, descobrimos que o que deixámos escapar não foi um momento, nem um gesto insignificante: fomos nós próprios. Tal como nas Metamorfoses de Ovídio, é justamente onde o esquecimento mergulha os seres noutras formas, que nos tornamo o eco negado do que poderíamos ter sido. Ovídio sabia que o silêncio não é uma mera retirada, mas um poder ambíguo. Nas tragédias gregas, é uma arma: na boca de Electra, o silêncio torna-se revolta; na de Antígona, desafio; na de Niobe, petrificação. No entanto, nós, modernos, confundimos muitas vezes silêncio com desaparecimento. Acreditamos que, ao suprimir os nossos desejos, ganhamos tempo; que, ao diminuir a nossa própria luz, servimos o mundo. Mas o silêncio, quando não é escolhido, esculpe um vazio interior onde tudo o que poderia florescer é sepultado.

E quantas vezes não nos sujeitámos ao domínio dessa humildade insensata que alberga o medo, disfarçando-o de virtude? Dizemo-nos que é nobre apagarmo-nos; chamamos-lhe paciência, contenção, discrição. Mas, na verdade, é uma lenta deserção. É assim que perdemos o nosso lugar no coro humano, um pouco como Orfeu perdendo Eurídice: virando a cabeça no momento errado, duvidando do que levamos connosco e do que nos segue.

O que se perde por falta de autoconhecimento não pode ser recuperado como um objeto extraviado. É um fio partido na trama do destino. Non exiguum temporis habemus, sed multum perdidimus – diz-nos Séneca: não é que nos falte tempo;........

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