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#PingoOGato

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22.11.2025

(Nota ao leitor: a realidade ultrapassa sempre a ficção.)

Era abril, um sábado claro. Luísa caminhava entre as prateleiras do supermercado com as duas filhas e um carro que pesadamente rangia sob as compras semanais. Deveria estar em casa a dormir o sono atrasado de quem passa noites a vigiar dores e urgências alheias. Mas “a vida” raramente se compadece dos cansaços de mãe. Ser enfermeira, mãe e timoneira de um lar era uma travessia sem porto seguro.

Desde 2003, quando concluíra a licenciatura, acreditava ter encontrado na enfermagem, no cuidar do outro, um ofício cuja retribuição se inicia, mas não se esgota no olhar de quem agradece. Gostaria de garantir aos seus o reconhecimento que sonhara enquanto adolescente. Desejara uma profissão digna, vocacional e uma vida familiar fácil, economicamente amparada pela estabilidade devida a quem nunca virou a cara ao esforço. Como se iludira!

Venderam-lhe uma promessa de futuro, mas recebera em troca a dureza de uma realidade ingrata – salários que mal chegavam ao fim do mês, noites sem repouso e um fardo de responsabilidades que se encastelavam sem trégua nem espaço para respirar. Ainda assim, por entre dificuldades e porque a juventude não espera, casara-se em 2004 com Carlos, operário metalúrgico, e juntos trouxeram ao mundo duas meninas — Marta de nove e Elsa, a mais nova, um desabrochar de cinco lindas pétalas.

Os primeiros anos de casamento foram sempre dias de mar revolto, dias em que a renda e as contas disputavam cada migalha. Com a chegada das filhas, as dificuldades multiplicaram-se num crescendo de coragem e forças que, a cada crise, pareciam mais difíceis de encontrar. A vida, afinal, não é senão um oceano tumultuoso onde a tripulação só se mantem firme porque acredita que algures no tempo, haverá um momento em que o horizonte trará a bonança de águas mais calmas. Porém, até então, a tranquilidade tinha sido sempre um momento transitório e de mau agoiro!

Assim era a sua vida, um sufoco só amenizado pela presença do Carlos, a alegria contagiante das filhas e o agradecimento dos que de si recebiam cuidados e alívio. No fim, pouco sobrava para o seu íntimo, mas aprendera a não se importar. Não era crente, alguém dominada por um credo, mas também não se sentia afastada de um Deus comum. Já não frequentava serviços religiosos, mas havia em si a bondade intrínseca de quem por entre a multidão sente comunhão e partilha. E fazia-o, não por crença, mas por bondade e respeito ao outro.

Crescera na década de oitenta, e enquanto geração que desabrochou em finais do século XX, viveu entre dois mundos. A nostalgia do passado que a idade sempre acentua, e a utopia de um futuro cada vez mais longínquo. Cresceu ouvindo o som familiar de uma ruralidade cada vez mais desajustada ao mundo novo e à utopia dos “amanhãs-que-cantam”. Fez-se menina nos ecos de “Abril”, nos tempos em que o país julgara despertar de um longo sono. Porém, tirando a “liberdade”, bem tão natural como o ar que se respira ou a água que jorra das fontes, hoje, já adulta, tudo o resto lhe parecem promessas por cumprir.

Enquanto menina vivia numa aldeia de muros caiados, musgo húmido e ao som dos sinos da igreja. Brincou sob os odores da terra quente com o ritmo das estações a marcar os ciclos do tempo. Herdou a esperança e uma “crença” feita de fé, uma fé que se amargurou com pela desconfiança com que se viam as promessas de novos rumos e futuro radiosos. Com os anos, o acreditar do sonhador, transformara-se mais num querer, num querer acreditar que quanto mais queria menos conseguia acreditar.

A formação católica cimentou-lhe uma herança moral de respeito pelo outro, de humildade na vida e de reconhecimento do valor do trabalho e da palavra. Aprendeu a ajoelhar-se, mas também a levantar-se e, nessa ausência de resignação, residia a razão da sua força. Como as mulheres do seu tempo, cresceu entre a missa de domingo e os novos tempos, entre a lavoura e a progressão nos estudos, entre a tradição e o sonho. Como tantas outras, tinha uma mãe que rezava em silêncio enquanto, em segredo, lhe desejava tudo quanto não tinha tido. E assim, pouco a pouco, como tantas outras, foi abrindo........

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