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#LeaveNoOneBehind

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12.12.2025

Foi em maio, num dia feito de memórias suspensas que o grupo se reuniu num almoço de saudade. À mesa, como quem ergue uma ponte sobre o tempo revisitaram um passado que continuava a pulsar mesmo quando o julgavam distante. Com as memórias entrelaçadas num novelo compacto, iam desfiando lembranças que surgiam como um fio de luz em que o tempo, esse artífice implacável, tece a matéria de tudo o que foram, e que, por momentos, parecia abrandar o ritmo apenas para os escutar.

No entanto, o hoje estendia-se diante dos presentes com imponderáveis silêncios, moldado por forças de que raramente somos donos, e que nos levam por caminhos onde o acaso tem sempre a última palavra. Entre goles de conversa e intervalos de olhar aqueles ex-combatentes percebiam que existia uma harmonia secreta entre o antes e o agora. E foi nessa quieta revelação que esse maio se abriu lembrando que, mesmo quando a vida se dispersa em acasos, há encontros que lhe dão sentido e a recompõem.

Já embrenhados uns com os outros e toldados por lágrimas de alegria e saudade, todos fizeram uma pausa de veneração quando, amparado por duas muletas, o Mário Reis entrou na sala. O silêncio que o acompanhava sublinhava com notas de solenidade o que acontecera naquele novembro de 1970.

Faziam então parte do regimento de cavalaria “pica-na-burra” sediado em Nova Sintra – Guiné 1970, quando nesse fatídico dia de novembro marchavam de regresso de Bissássema onde se tinham deslocado dois dias antes. Tinham ido lá porque necessitavam afirmar a ocupação do território, mas também porque eles próprios eram os primeiros a duvidar se alguma vez o teriam realmente ocupado.

Estávamos no auge de uma guerra de guerrilha iniciada em 1963 e que opunha as tropas portuguesas ao movimento de libertação do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo-Verde (PAIGC). O PAIGC tinha emboscado e destruído o antigo quartel, e agora as forças portuguesas ponderavam reconstruir essa posição. A afirmação de territorialidade a par da colaboração com as populações eram pedras basilares da política de então.

Apesar de a distância entre Nova Sintra e Bissássema ser relativamente curta, pouco mais de 20 quilómetros, o risco de emboscada tornava praticamente inviável o trajeto em linha reta usando a estreita picada de terra batida.

A deslocação teria de ser feita fora dos caminhos habituais, num trajeto não linear e o menos previsível possível. A ida demorara cerca de seis horas e, depois de dois dias aí sediados para levantamento das condições, iniciaram o regresso.

A selva guineense, apesar de não ser habitat dos grandes predadores africanos, tinha os mais pequenos por “donos” do território. Formigas, mosquitos e serpentes, qualquer um deles um senhorio despido de um qualquer romantismo.

Fugir aos caminhos de terra batida e aventurar-se pela selva ou a savana da Guiné, apesar do romantismo e beleza natural, impunha um risco constante. A vegetação podia esconder trilhos traiçoeiros, fossos naturais, raízes escorregadias, e a falta de visibilidade facilitava encontros inesperados com cobras que, bem camufladas no capim ou sob troncos, são conhecidas pelo mau feitio com que reagem quando perturbadas. As formigas, embora infestante de pequenas dimensões, representam outro perigo real. Algumas espécies, como as formigas-safári, fazem longas marchas, têm um cheiro nauseabundo e, se importunadas, atacam em grande número e com picadas dolorosas. Estes ataques são tão maciços que obrigam qualquer viajante a recuar e a desviar o caminho. Nos trechos de savana aberta, o calor intenso, a escassez de água potável e a falta de sombra........

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