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Quem tem medo de um Museu dos Descobrimentos?

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13.12.2025

Sabemos hoje mais sobre os navios romanos de há dois mil anos do que sobre as embarcações com que os Portugueses do século XV abriram o mundo. Por paradoxal que pareça, ninguém sabe ao certo como era um barinel, uma caravela nas suas proporções verdadeiras, na sua arquitectura íntima de casco e mastreação. Escavaram-se mais navios da Grécia Clássica do que navios portugueses da chamada Era dos Descobrimentos – o nosso próprio passado é um arquipélago de silêncios, feito mais de conjecturas do que de achados. Faltam-nos os navios – reais, tangíveis, escavados e estudados. Falta-nos o que permitiria a um país marítimo olhar-se ao espelho, sem nevoeiro.

E sei do que falo. Há trinta anos que sou arqueólogo náutico e subaquático, especializado em navios ibéricos. Encontrei, escavei e desmontei um galeão espanhol nos Açores. Fiz a carta dos naufrágios de Cabo Verde e dos Açores. Mergulhei num recife de coral na Austrália para recuperar moedas de prata espanholas, naufragadas num navio português que seguia de Lisboa para Macau. Nas águas silenciosas do Emirato de Sharjah procurei vestígios de embarcações portuguesas. Na pequena ilha omanita de Masirah deparei-me com a estória de André Cortes, que em 1546 combateu, com a filha bebé ao colo, contra piratas nautaques que acabaram por o fazer cativo.

Em Colónia do Sacramento, deixei-me ficar diante da foz larga e turva do rio da Prata, onde Portugueses e Espanhóis trocaram tiros vezes sem conta. Na ilha de Moçambique, a 20 metros de profundidade, mergulhei num canhão português em bronze, que ajudei a salvar da cupidez dos caçadores de tesouros. Na costa da Namíbia identifiquei a nau Bom Jesus, desaparecida em 1533 e reencontrada quase cinco séculos depois. Nas Caraíbas, segui o rasto do navio negreiro Esperança, francês no casco e no comércio, mas convenientemente português no pavilhão.

Estas histórias não são notas de viagem: são a medida do que ainda não sabemos. Mostram que o passado marítimo português está por contar – e que um Museu dos Descobrimentos, mais do que uma instituição, deveria ser um laboratório de verdade histórica. Um espaço onde a arqueologia, a história, a crítica, a memória e o incómodo se possam encontrar sem medo.

Quando digo Museu dos Descobrimentos, obviamente não falo de “descobrimentos”. Poucas terras foram verdadeiramente descobertas: os Açores, a Madeira, Cabo Verde, a remota ilha de São Paulo no Índico – e pouco mais. O que os Portugueses fizeram, acompanhados por Venezianos, Genoveses, Flamengos ou Alemães que com eles navegaram, foi resolver uma equação que permanecera irresolúvel durante séculos: como lá chegar. Lá, ao conhecido e ao desconhecido. Lá, àquilo que se intuía nos mapas incompletos, nos portulanos carregados de hipóteses, nos nebulosos limites do mundo medieval.

Quem navegou naqueles séculos iniciais, fundiu tecnologia e ciência muçulmana e judaica com um saber-fazer cristão e, dessa síntese improvável, fez-se ao mar. Não foi um milagre; foi engenharia, matemática, cosmografia, cálculo astronómico, carpintaria naval, meteorologia empírica, e sobretudo a coragem de combiná-los. O resto foram encontros – inevitáveis, transformadores, por vezes violentos, as mais das vezes mutuamente fecundos.

Se os Portugueses encontraram o Brasil, também os povos do Brasil encontraram Portugal. Se chegaram às costas do Japão, não tardou muito até que emissários Japoneses atravessassem meio mundo e descessem literalmente na Europa, em navios portugueses, invertendo as rotas e as narrativas. Não há unilateralidade na história global: há fluxos, retornos, contaminações, aprendizagens cruzadas. Esquece-se facilmente que o universalismo europeu começou por ser, ele próprio, uma descoberta do Outro.

O maior feito dos Portugueses de então não foi terem simplesmente navegado. Outros antes deles navegaram – Fenícios, Árabes, Chineses. O que os Portugueses fizeram foi outra coisa: desfizeram a escolástica medieval. Abriram fendas no pensamento fechado, na visão teológica do espaço, no mapa moral do mundo. Aceitaram que a experiência directa pudesse contradizer a teoria; que o mar, ao contrário dos livros, não mentia; que um piloto pragmático pudesse valer tanto quanto um letrado. Substituíram a especulação pelo empirismo. Distorceram a gramática da Idade Média e inauguraram, sabendo-o ou não, um modo novo de estar no mundo.

Em Fevereiro de 1502, Valentim Fernandes imprimiu em Lisboa o Livro de Marco Polo e enviou-o, fresco da tipografia, para a Armada que partiria dias depois rumo à Índia. Não o fez para ornamentar bibliotecas, nem para perpetuar maravilhas orientais num registo literário. Fê-lo para uma função prática, quase científica, e deixou-o claro no colofão: o livro servia “para avisamento........

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