Não sei se era inocência minha, se de toda uma época, mas houve um tempo em que palavras, t-shirts e canções pareciam ter alguma espécie de poder para mudar o mundo. Na verdade, era apenas a segunda vez que acontecia, e talvez já sem que tivesse sequer o impacto dos profetas pop inaugurais dos anos 60. Todavia, naqueles dias do fim de século, da passagem dos anos 80 para os 90, do fim do Apartheid, da queda do Muro, da emancipação das antigas repúblicas soviéticas, dos Live Aids e afins, a palavra, o mantra, o refrão certos, pareciam ter a capacidade de pôr em marcha independências, libertações, acordos de paz, mudanças de comportamento de milhões. Hoje, 30 anos passados pelo escriba e pelo planeta, vemos os U2 papaguearem umas coisas em Las Vegas sobre a morte de Alexei Navalny na Sibéria e apetece perguntar-lhes se sabem que horas são.

É como uma arma, há muito descarregada, que insiste em disparar. Uma atracção mecânica num parque de diversões abandonado, que o último zelador deixou ligada à corrente por pirraça ou desesperado gesto poético. A mesma música repetida a tocar para ninguém. “Parece que Putin nunca diz o seu nome. Temos de dizer o seu nome! Alexei Navalny!”, atira Bono Vox, atrás dos mesmos óculos, do mesmo cabelo, de todo o mesmo look do tempo de “Miss Sarajevo” que insiste em manter e que, um dia, foi a coisa mais cool que havia. Não ajuda a esta vaga sensação de anacronismo que, de repente, nos dá a volta à barriga. Como é que é, Las Vegas, quero ouvir! Na melhor das hipóteses, soou a obrigação, cumprimento do caderno de encargos de se ser os U2; na pior, a demagogia, futilidade, acessório sério com que enfeitamos a vestimenta de “activistas”.

Ficámos cínicos – mas se, ao menos, tivéssemos sido só nós. Foi todo o mundo que descreu. Do tempo do fim da História, em que tudo parecia caminhar num determinado sentido e para uma determinada conclusão, passámos a este, que só um dia, lá mais para a frente, gente mais competente saberá dissecar. Demasiadas desilusões políticas, demasiados ídolos caídos em desgraça, demasiada indignação de rede social, demasiado gosto pelo autodestrutivo desporto da iconoclastia. Quase tudo nos parece ingénuo ou inútil. Discutimos ardentemente um assunto durante 24 horas e logo baixamos os braços.

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Navalny e a extravagância de lutar

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22.02.2024

Não sei se era inocência minha, se de toda uma época, mas houve um tempo em que palavras, t-shirts e canções pareciam ter alguma espécie de poder para mudar o mundo. Na verdade, era apenas a segunda vez que acontecia, e talvez já sem que tivesse sequer o impacto dos profetas pop inaugurais dos anos 60. Todavia, naqueles dias do fim de século, da passagem dos anos 80 para os 90, do fim do Apartheid, da queda do Muro, da emancipação das antigas repúblicas soviéticas, dos Live Aids e afins, a palavra, o mantra, o refrão certos, pareciam ter a capacidade de pôr em marcha independências, libertações, acordos de paz, mudanças de comportamento de milhões.........

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