Na década de 1970, a Europa era sacudida pela Guerra Fria. Vivi até 1976 nesse clima, depois me mudei para Belo Horizonte e posso confessar, como testemunha, que essa fase não deixou saudades em mim nem em minha geração.

Quando estudante de filosofia na Universidade de Milão, acabei sendo um comparsa de motins, manifestações e confrontos de praça. Esquivei-me de cacetadas e bombas de efeito moral e respirei o cheiro pestilencial de veículos queimando. Quando a primeira bomba pra valer explodiu na Banca della Agricultura, em Milão, matando 12 pessoas, quase caí da cadeira no quarto da república de estudantes onde morava, a poucas quadras.

A ideia do socialismo me entusiasmava, apesar de ter nascido numa família que a detestava. Marx e suas teorias me fascinavam. Acabei, assim, nas férias de verão, viajando com um amigo para os países do bloco comunista, fato raro naquela época. Comecei pela Bulgária, e a decepção foi surpreendente; segui para a Romênia e, não fosse por uma moça que me empolgou com seu olhar verde-garrafa, teria fugido de lá no segundo dia.

A repressão e a mão de ferro das polícias comunistas não davam espaço à liberdade de ninguém. Para chegarmos às praias do mar Negro, a moça ficou agachada no fundo do carro e explicava rotas para se esquivar das patrulhas, que, se a encontrassem no veículo estrangeiro, lhe aplicariam multa de um salário e, na reincidência, três meses de trabalhos na cata estatizada de cebolas.

Respiravam-se a tristeza, o medo e a miséria parecidos com aqueles que viria a encontrar em seguida visitando prisões aqui, no Brasil. Corrupção e trambiques de toda espécie, numa farsa ditada pelo comunismo, que durou 70 anos e ainda marca profundamente os países do Leste Europeu. Cancelei o resto da viagem, programada para chegar à Rússia, e voltei para Milão, carregando ideias diferentes.

Levei comigo a saudade da moça romena, mas deixei por lá minha empolgação com o marxismo e decidi me casar com a filosofia platônica e a teosofia.

Não me arrependi da troca do socialismo pela sabedoria de Gandhi, que, se não me transformou em santo, me ensinou a viver com o otimismo e a tolerância que Marx nunca me mostrou.

QOSHE - Fuga do Leste - Vittorio Medioli
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Fuga do Leste

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08.04.2024

Na década de 1970, a Europa era sacudida pela Guerra Fria. Vivi até 1976 nesse clima, depois me mudei para Belo Horizonte e posso confessar, como testemunha, que essa fase não deixou saudades em mim nem em minha geração.

Quando estudante de filosofia na Universidade de Milão, acabei sendo um comparsa de motins, manifestações e confrontos de praça. Esquivei-me de cacetadas e bombas de efeito moral e respirei o cheiro pestilencial de veículos queimando. Quando a primeira bomba pra valer explodiu na Banca della Agricultura, em Milão, matando 12........

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