As paixões e o egoísmo inebriam e deixam, no afã, o ser humano ver antes o que está procurando naquilo que está olhando. A alquimia da ilusão, movida pelo desejo cego, confunde chumbo com ouro, vidro com diamante, falso com autêntico, fel com mel. Embora nada seja pertinente, e até o contrário do perseguido, uma vontade interna irrefreável transfigura a realidade mais cristalina, deixando-a parecer exatamente o que se quer e se ambiciona.

O espectador imparcial dessas quimeras fica pasmo com o engano do alucinado e, quando tenta “abrir seus olhos”, corre não só o risco de ser rejeitado, como o de ser ofendido. A intensidade da miragem leva ao devaneio, a sonhar o irreal, e nenhum meio consegue facilmente desfazer o engano.

Teorias hinduístas afirmam que, no erro, o sujeito procura se machucar e se castigar, pois o que é considerado errado pelos sentidos do homem comum, para os deuses, se trata da prova necessária, da derrota construtiva, da experiência sem a qual seria improvável evoluir.

E também, se a mente é distraída por um forte interesse, menos dolorosa será a sensação da lesão. Como acontece com o menino que, focado num interesse, se esquece da picada da agulha, tornando-a suportável.

No filme da vida do monge de Nola Giordano Bruno, ele passa por um momento em que, debaixo dos ferros impiedosos da Inquisição, se “separa” do corpo e entra em êxtase. Os faquires iogues, por sua vez, passam pelos carvões em brasas, nos cacos de vidros, nas camas de prego e até crucificados controlam a dor como se não fosse com o corpo deles. Existem provas para supor que seres humanos excepcionais desenvolveram o controle de suas reações e podem ser refractários a sensações corporais comuns.

Lembro-me de um cão raçudo e inteligente que, atropelado, ficou com uma perna quebrada e o osso exposto fora do couro, um espetáculo de dar calafrios. A expressão dele era triste, tentava se lamber sem tirar a atenção da ferida. Bastou o dono chegar, e a alegria o transformou, sem dar o menor vestígio de incômodo, abanando o rabo e querendo carícias do amado amigo. O amor intenso e puro como aquele de um cão fiel se tornou um fármaco poderoso, relegando o intenso sofrimento a segundo plano.

Quanto mais se vive, mais se aprende. O mundo é um repositório de fenômenos incalculáveis em sua perfeição. Tanto descendo ao micro como subindo ao macrocosmo, há sempre algo a mais para aprender.

Os poucos conhecimentos armazenáveis na mente humana representam um grão de areia no deserto ou uma gota no oceano. Bem por isso os “princípios” de comportamento que norteiam uma existência humana se tornam as coordenadas para um ser minúsculo e “insignificante” lançado no universo infindável.

Um homem sábio, que se tornou presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson, numa carta ao seu sobrinho, Peter Carr, datada de 19 de agosto de 1785, deixou a ele um conselho precioso, que serve para todos: “Embora você não consiga ver quando dá um passo, qual será o próximo; siga, em qualquer hipótese, a verdade, a justiça e a retidão e não tema perder algo, será conduzido (no momento certo) para fora do labirinto de dúvidas da maneira mais simples possível. O nó que você pensava ser górdio será desatado diante de você e a estrada se apresentará gloriosa”.

QOSHE - Egoísmo e ilusões - Vittorio Medioli
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Egoísmo e ilusões

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16.01.2024

As paixões e o egoísmo inebriam e deixam, no afã, o ser humano ver antes o que está procurando naquilo que está olhando. A alquimia da ilusão, movida pelo desejo cego, confunde chumbo com ouro, vidro com diamante, falso com autêntico, fel com mel. Embora nada seja pertinente, e até o contrário do perseguido, uma vontade interna irrefreável transfigura a realidade mais cristalina, deixando-a parecer exatamente o que se quer e se ambiciona.

O espectador imparcial dessas quimeras fica pasmo com o engano do alucinado e, quando tenta “abrir seus olhos”, corre não só o risco de ser rejeitado, como o de ser ofendido. A intensidade da miragem leva ao devaneio, a sonhar o irreal, e nenhum meio consegue facilmente desfazer o engano.

Teorias hinduístas afirmam que, no erro, o sujeito procura se machucar e se castigar,........

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