O suicídio entre nós, povos indígenas, é uma ferida que não pode ser ignorada, uma ferida aberta pela falta de demarcação de nossas terras, uma ferida que sangra a esperança e dilacera nossas comunidades. Quando nos tiram nosso direito à terra, aos rios, aos nossos direitos originários de pertencer a um lugar, nos arrancam a alma. Nos arrancar de nossas terras e rios é como arrancar o filho dos braços da mãe em período de amamentação.

A Fiocruz, recentemente, nos trouxe números alarmantes, números que não são apenas estatísticas, são vidas perdidas, são sonhos interrompidos. A taxa de suicídio entre os povos indígenas é um grito de socorro, duas a três vezes mais alta do que na população brasileira em geral. E quem são os mais atingidos? Nossas crianças, nossos jovens, os guardiões do futuro, que estão sendo arrancados de nós antes mesmo de florescerem; não existe futuro sem futuro.

Para os Xakriabá, essa dor é conhecida, é uma sombra que paira sobre nossas cabeças. Quando um jovem se vai, não é apenas um indivíduo que parte, é uma parte de nós que se vai junto, é um elo na corrente da vida que se rompe. E por quê? Porque nossas terras não são demarcadas, porque nossa identidade é negada, porque somos tratados como estranhos em nossa própria casa.

A conexão existencial dos povos indígenas é ancestral, faz parte de sua identidade de forma intrínseca, transmitida através das gerações como um ato de resistência. Os mitos, rituais e tradições indígenas não só fornecem orientação, mas também definem o lugar de cada indivíduo dentro do mundo. Esse lugar é moldado em coletividade, seguindo uma lógica comunitária que ressalta a importância do todo sobre o indivíduo.

A demarcação de terras não é um luxo, uma mera formalidade legal, é uma questão de sobrevivência, é uma questão de dignidade e nosso direito como povo originário. Se o Brasil começa por nós, por que nós temos que provar que estávamos nas nossas terras antes de Cabral? Nossas terras são mais do que simples espaços geográficos, são o sangue que corre em nossas veias, são os sussurros de nossos ancestrais, são os alicerces de nossa existência.

Para enfrentar essa epidemia silenciosa, precisamos de urgência nas demarcações das nossas terras, a negação do nosso direito territorial nos mata coletivamente. Precisamos de ação concreta, de políticas que respeitem nossas tradições, nossos modos de vida, nossas crenças. Precisamos de educação que fortaleça nossa identidade, que nos empodere, que nos dê esperança para enfrentar os desafios do amanhã.

A demarcação de terras é uma questão de justiça e de reparação histórica, de respeito pelos direitos humanos. De tudo e de tanto que já nos foi arrancado, não podemos permitir que nos levem também a alma e a nossa vontade de existir e resistir. Como dizia o cacique Darã, da aldeia Tekoa Porã, “para nossos antepassados, a natureza era nossa conselheira e psicóloga, pois, quando o indígena estava na aldeia, ele pegava seu arco e flecha e se retirava para a mata para refletir. E hoje, como podemos fazer isso?”. Porã foi encontrado morto em outubro de 2023.

A ligação entre as questões territoriais e o suicídio indígena é inegável. A demarcação de terras é a defesa da vida, não é somente uma pauta progressista, mas também humanitária. É um bem prestado à humanidade. Quem tem território tem lugar para onde voltar, tem mãe, tem colo e tem cura.

CÉLIA XAKRIABÁ
Deputada federal (PSOL-MG)

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A terra é a nossa alma

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28.03.2024

O suicídio entre nós, povos indígenas, é uma ferida que não pode ser ignorada, uma ferida aberta pela falta de demarcação de nossas terras, uma ferida que sangra a esperança e dilacera nossas comunidades. Quando nos tiram nosso direito à terra, aos rios, aos nossos direitos originários de pertencer a um lugar, nos arrancam a alma. Nos arrancar de nossas terras e rios é como arrancar o filho dos braços da mãe em período de amamentação.

A Fiocruz, recentemente, nos trouxe números alarmantes, números que não são apenas estatísticas, são vidas perdidas, são sonhos interrompidos. A taxa de suicídio entre os povos indígenas é um grito de socorro, duas a três vezes mais alta do que na população brasileira em geral. E quem são os mais atingidos? Nossas crianças, nossos jovens, os guardiões do futuro, que estão sendo arrancados de nós antes mesmo de florescerem; não........

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