D e tempos a tempos, vou à prateleira dos livros de gastronomia buscar o ‘ingrediente secreto’: Secret Ingredients, assim se chama a saborosa antologia de textos da New Yorker sobre comida e bebida que ando a ler em suaves prestações desde março de 2010. Reunindo textos de autores como Anthony Bourdain, Bill Bufford, Woody Allen, Roald Dahl e Julian Barnes, trata-se de um verdadeiro manjar dos deuses para qualquer leitor com um bom apetite.

A propósito, é precisamente esse o título da minha mais recente leitura – ‘A Good Apetite’, de A. J. Liebling, um autor que até aqui eu desconhecia por completo. Nascido em 1904 em Nova Iorque, filho de um abastado comerciante de peles judeu, Liebling estudou na Universidade de Columbia e iniciou-se no jornalismo na secção de desporto do The New York Times. Até que em 1926 o pai lhe fez uma proposta que ele não podia recusar: um ano de estudos pagos em Paris.

E foi assim que o jovem Abbott Joseph embarcou num paquete rumo à Europa. Supostamente ia estudar literatura medieval na Sorbonne, mas parece que alguns obstáculos se interpuseram entre ele e a velha instituição. Em particular as atrizes do teatro e a irresistível cozinha francesa.
Sugiro que saboreemos um pouco da prosa de Liebling: «Na era heroica antes da Primeira Guerra Mundial, havia homens e mulheres que comiam, além de um almoço colossal e de um jantar glorioso, uma volumosa ceia depois do teatro ou de outras diversões nocturnas. Conheci alguns dos sobreviventes, octogenários com um apetite imaculado e um bom humor infalível […] mas deixaram de ter rivais à altura desde que os médicos descobriram a existência do fígado humano».

Um desses homens de «apetite imaculado» era Yves Mirande – autor de peças de teatro e de literatura ligeira. Apesar da sua pequena estatura, Mirande deixava toda a gente abismada. Era capaz de devorar, numa mesma refeição, figos com presunto, uma salsicha quente, filetes de lúcio com molho, perna de carneiro com anchovas, «alcachofras num pedestal de foie gras, e quatro ou cinco tipos de queijo, com uma boa garrafa de Bordéus e outra de champanhe, depois do que pedia um conhaque».
Não é apenas a quantidade de comida que nos deixa de boca aberta. É também a qualidade da escrita. Espreitemos um encontro de Liebling e Mirande em 1955: «Começámos com uma truite au bleu – uma truta viva simplesmente cozida até à morte em água a ferver, como um imperador romano no seu banho. Foi servida encharcada em manteiga derretida suficiente para trombosear um regimento inteiro de Paul Duddley Whites» (note-se que Duddley White era um eminente cardiologista e paladino da medicina defensiva…).

Facto curioso e inexplicável, entre as páginas de Secret Ingredients apareceu-me por estes dias um recorte de jornal. Um pequeno relato de uma aula na universidade em que se falou sobre a medicina do século XVII. Acuriosidade levou-me até estas linhas: «Assim, a digestão não será como na concepção mecanicista uma simples trituração mecânica, mas como um processo de fermentação, ideia de que nascerá a bioquímica moderna». Donde veio este recorte? Não faço ideia, é um perfeito mistério. Mas não encontro uma sobremesa mais adequada. Liebling dizia que «o primeiro requisito para escrever bem sobre comida é ter um bom apetite». Mas convenhamos:depois destas orgias gastronómicas também dava jeito uma boa digestão.

QOSHE - Um jornalista com um grande apetite - José Cabrita Saraiva
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Um jornalista com um grande apetite

8 1
19.01.2024

D e tempos a tempos, vou à prateleira dos livros de gastronomia buscar o ‘ingrediente secreto’: Secret Ingredients, assim se chama a saborosa antologia de textos da New Yorker sobre comida e bebida que ando a ler em suaves prestações desde março de 2010. Reunindo textos de autores como Anthony Bourdain, Bill Bufford, Woody Allen, Roald Dahl e Julian Barnes, trata-se de um verdadeiro manjar dos deuses para qualquer leitor com um bom apetite.

A propósito, é precisamente esse o título da minha mais recente leitura – ‘A Good Apetite’, de A. J. Liebling, um autor que até aqui eu desconhecia por completo. Nascido em 1904 em Nova Iorque, filho de um abastado comerciante de peles judeu, Liebling estudou na Universidade de Columbia e iniciou-se no jornalismo na secção de desporto do The New York Times. Até que em 1926 o pai lhe fez uma........

© Jornal SOL


Get it on Google Play