Como terá sido ser apanhado pela tempestade de fogo que sepultou Pompeia deibaixo de cinza vulcânica?», leio na badana da minha mais recente aquisição. «Ver o Titanic deslizar para debaixo das ondas? Estar no avião que deixou cair a bomba atómica sobre Nagasáqui?».

O livro de que vos falo chama-se The Faber Book of Reportage. Cruzei-me com ele em 2010, quando estava ainda a iniciar no jornalismo, e inscrevi-o na minha lista para aquisições futuras.

Reportagem, aqui, não se refere a textos publicados como tal em jornais ou revistas, mas a testemunhos diretos de acontecimentos que em muitos casos quase nos parecem da ordem dos mitos. Folheando as páginas, encontro: ‘Um jantar com Átila o Huno’, c. 450 d.C., título que, não sei porquê, me fez lembrar um episódio em que o jornalista britânico John Simpson, entrevistando um líder africano com fama de canibal em casa deste, se esgueirou com uma desculpa qualquer e foi espreitar para dentro do frigorífico; ‘Um funeral víquingue’, ano 922; ‘A Batalha de Agincourt’, 25 de outubro de 1415, segundo a descrição de um cavaleiro francês; uma visita a um banho turco em Adrianópolis, em 1717, pela mulher de um diplomata inglês; a entrada de Napoleão em Moscovo, em 1812; um leilão de escravos na Virgínia de 1846; a conquista do Evereste no final de maio de 1953.

«É história que estes relatos nos oferecem, mas a história despojada de generalizações», reflete o editor deste pequeno tesouro literário, John Carey. «A omnisciência é estranha a estes escritores. O verniz da interpretação foi retirado de modo a vermos as pessoas com clareza, como eram originalmente – olhando pasmadas para o que era, naquele momento, a última coisa que lhes tinha acontecido».

Como fica claro pela amostra deixada acima, o livro oferece-nos uma maravilhosa combinação de grandes acontecimentos com factos mais episódicos ou anedóticos. Por exemplo, na página ao lado de uma descrição da batalha de Waterloo, que ditou a derrota definitiva de Napoleão Bonaparte, deparamo-nos com este título curioso: ‘Embalsamar um Patriarca, novembro de 1815’.

O texto começa assim: «No sábado, para minha surpresa, ao aproximar-me do mosteiro, encontrei uma multidão reunida às portas da igreja; e, ao entrar, vi o patriarca morto sentado numa cadeira, com um báculo na mão esquerda e o Novo Testamento na direita». O autor do relato é um médico inglês no Líbano, Charles Lewis Meryon. «Prostrados, à frente e à volta dele, havia mulheres e homens, alguns dos quais reverentemente se aproximavam do cadáver, e lhe arrancavam um pelo da barba ou beijavam a mão». O resto da descrição do embalsamamento deixo a cargo da imaginação do leitor.

Não é raro, com o passar dos anos, deixarmos de perceber o que nos interessou tanto neste ou naquele livro, que para nós perdeu, se não o interesse, pelo menos o encanto. Neste caso, não se passou nada disso. Oencanto não esmoreceu. Se não o adquiri em 2010 foi simplesmente porque não estava com desconto, como achei que devia estar. Ao fim destes 14 anos lá me apareceu de novo, desta vez ridiculamente barato. Olhou para mim como se estivesse mesmo à minha espera. Ainda assim, há menos tempo do que eu esperava por ele…

QOSHE - Um jantar com Átila e outras reportagens - José Cabrita Saraiva
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Um jantar com Átila e outras reportagens

14 1
23.02.2024

Como terá sido ser apanhado pela tempestade de fogo que sepultou Pompeia deibaixo de cinza vulcânica?», leio na badana da minha mais recente aquisição. «Ver o Titanic deslizar para debaixo das ondas? Estar no avião que deixou cair a bomba atómica sobre Nagasáqui?».

O livro de que vos falo chama-se The Faber Book of Reportage. Cruzei-me com ele em 2010, quando estava ainda a iniciar no jornalismo, e inscrevi-o na minha lista para aquisições futuras.

Reportagem, aqui, não se refere a textos publicados como tal em jornais ou revistas, mas a testemunhos diretos de acontecimentos que em muitos casos quase nos parecem da ordem dos mitos. Folheando as páginas, encontro: ‘Um jantar com Átila o Huno’, c. 450 d.C., título que, não sei porquê, me fez lembrar um episódio em que o jornalista........

© Jornal SOL


Get it on Google Play