De tempos a tempos, lá vai aparecendo algum reforço, seja uma biografia de Chopin, seja um relato do último ano de vida de Mozart. Ainda assim – e apesar de alguns títulos realmente notáveis – a história da música está longe de ser dos temas mais bem representados na minha biblioteca.

Recentemente pareceu surgir a oportunidade de lhe acrescentar um estudo sobre a vida e obra de Beethoven em cinco volumes, da autoria de Brigitte e Jean Massin, um casal com uma história curiosa. Nascido em Paris em 1917, Jean fez os seus estudos no seminário de Roma e tornou-se padre, funções que exerceu até 1952. Como contou numa entrevista à televisão francesa, um dia deu uma conferência em Estrasburgo sobre o poeta e dramaturgo Paul Claudel e, no final, uma pequena companhia de teatro amador representou algumas cenas de Claudel no palco. Brigitte, dez anos mais nova do que ele, era uma das atrizes dessa companhia. Entenderam-se de imediato.

Apesar do gosto pela literatura, a principal ocupação de Jean depois de abandonar o sacerdócio era outra. Filho de um violinista, tinha cinco irmãs que tocavam piano e um irmão que tocava violoncelo. A musicologia – dizia perante as câmaras, enquanto batia com o seu cachimbo para limpar o fornilho – foi uma escolha natural. Já Brigitte, que trabalhava como jornalista, aprendera piano e órgão em jovem. Um dia, ouviu num concerto os últimos quartetos para cordas de Beethoven. «Foi uma verdadeira revelação, um choque», confessou. A partir daí quis descobrir tudo o que pudesse sobre o autor daquelas melodias.

Pouco depois de se conhecerem, Jean e Brigitte meteram mãos à obra, começando por organizar cronologicamente todos os documentos que encontraram sobre o génio de Bona. Trabalharam febrilmente, com enorme rigor mas também com enorme entusiasmo. Logo em 1955 ficava pronto o seu estudo sobre Beethoven. O tal publicado em Portugal em cinco volumes, que quis adquirir mas afinal revelou-se indisponível. Tive de me conformar.

Até que um destes dias, em Paris, passeando com a família junto ao Sena, estaquei num bouquiniste, uma dessas «bancas de livros ao ar livre onde sucessivas gerações de estudantes encontraram alimento intelectual e gerações de amadores se comprazeram no passatempo civilizado de colecionar livros», como notou Kenneth Clark. Nunca em visitas anteriores à capital francesa me atrevera a tanto, mas desta vez tive a ousadia de retirar um exemplar ou outro para averbar o preço. O monumental estudo dos Massin, num só volume com sobrecapa, estava a dez euros. Ao lado estava um outro volume, ainda mais monumental, sobre Mozart, também assinado pelo casal. Havia muitos outros livros tentadores.

Por pouco não me dirigi a um senhor que, como eu, ia pegando em vários volumes, tirando-os do seu lugar e acumulando-os num banco de jardim voltado para o rio. Acabei por perceber que se tratava também de um cliente que, ao contrário de mim, que estava limitado por causa do peso e do dinheiro, poderia levar quantos livros quisesse. O dono da banca era outro: um senhor discreto, de bigode ruivo bem aparado e olhos claros, impecavelmente vestido com fato e chapéu castanhos. Os livros, pode dizer-se, apresentavam-se tão impecáveis quanto ele. Envolvidos por um celofane forte, guardei-os na mochila e chegaram a casa são e salvos.

E foi assim que me estreei a comprar nessa venerável instituição plantada à beira do Sena há cinco séculos.

Quanto à secção de história da música, continua longe de ser a mais brilhante da minha biblioteca. Mas parece que, aos poucos, a coisa começa a compor-se.

QOSHE - Um casal unido pela música - José Cabrita Saraiva
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Um casal unido pela música

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16.02.2024

De tempos a tempos, lá vai aparecendo algum reforço, seja uma biografia de Chopin, seja um relato do último ano de vida de Mozart. Ainda assim – e apesar de alguns títulos realmente notáveis – a história da música está longe de ser dos temas mais bem representados na minha biblioteca.

Recentemente pareceu surgir a oportunidade de lhe acrescentar um estudo sobre a vida e obra de Beethoven em cinco volumes, da autoria de Brigitte e Jean Massin, um casal com uma história curiosa. Nascido em Paris em 1917, Jean fez os seus estudos no seminário de Roma e tornou-se padre, funções que exerceu até 1952. Como contou numa entrevista à televisão francesa, um dia deu uma conferência em Estrasburgo sobre o poeta e dramaturgo Paul Claudel e, no final, uma pequena companhia de teatro amador representou algumas cenas de Claudel no palco. Brigitte, dez anos mais nova do que ele, era uma das........

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