Oque nos leva a dizer que certo livro é ‘delicioso’? Trata-se sem dúvida de uma expressão curiosa, uma vez que os ingredientes básicos são sempre os mesmos – papel, um pouco de cola e tinta. E nem se pode dizer que sejam especialmente saborosos… O que cada autor (e editor) consegue fazer com eles é outra conversa.

No campo da leitura, as metáforas culinárias ou alimentares – chamemos-lhes assim, à falta de melhor – têm uma longa tradição. Já no século XII, um intelectual e homem da Igreja francês se autodenominava Petrus Comestor – Pedro, o Comilão ou o Devorador. Devorador de quê? De livros, naturalmente. Pedro era um leitor insaciável.

Mais de oito séculos depois, continuamos a usar o verbo ‘devorar’ para designar uma leitura rápida, voraz, às vezes feita até com sofreguidão. «Devorei o Equador em cinco dias», dizia-me uma pessoa amiga.


Mas estes paralelos com o ato de comer nem sempre têm uma conotação tão positiva. Também se pode dizer de um livro que é ‘indigesto’, se por acaso se revela de leitura difícil; que a escrita é ‘mastigada’, quando custa tanto a engolir como aqueles alimentos que ficam demasiado tempo na boca e já perderam todo o sabor (algumas crianças saberão certamente do que estou a falar); ou ainda que é ‘insosso’, ‘sensaborão’, ‘fastidioso’ ou ‘desenxabido’.
Vendo bem, um livro também é alimento – mas para o espírito – e por isso faz sentido usar estas expressões.

Diria no entanto que quando reputamos um livro de ‘delicioso’ não é apenas de questões do espírito que estamos a falar. Na realidade, creio que é precisamente isso que distingue um livro bom, ou mesmo muito bom, de um livro que consideramos ‘delicioso’: o primeiro dirige-se à inteligência; o segundo convoca e estimula também os sentidos.

O livro que acabo de ler por estes dias preenche exatamente esse requisito. Fala de memórias, de objetos, de pessoas. Descreve lugares, vidas e momentos da História.
Mas fá-lo com uma sensibilidade particular, de uma forma que desencadeia em cada leitor um mundo de sensações.

Talvez o facto de o autor não ser um escritor profissional, mas antes um artífice especializado, contribua para isso. Trata-se de alguém habituado a pesar, a esculpir, a sentir o toque dos materiais nas mãos.

Este é um daqueles livros que não queremos devorar à pressa, mas antes saborear demoradamente. E, à medida que vamos avançando, entramos num conflito permanente entre a vontade de ler as páginas seguintes e o desejo de que não chegue ao fim.

Na próxima semana falarei sobre este autor e sobre o seu delicioso livro. Espero que este pequeno aperitivo vos tenha deixado com água na boca.

QOSHE - O livro como alimento - José Cabrita Saraiva
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O livro como alimento

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21.03.2024

Oque nos leva a dizer que certo livro é ‘delicioso’? Trata-se sem dúvida de uma expressão curiosa, uma vez que os ingredientes básicos são sempre os mesmos – papel, um pouco de cola e tinta. E nem se pode dizer que sejam especialmente saborosos… O que cada autor (e editor) consegue fazer com eles é outra conversa.

No campo da leitura, as metáforas culinárias ou alimentares – chamemos-lhes assim, à falta de melhor – têm uma longa tradição. Já no século XII, um intelectual e homem da Igreja francês se autodenominava Petrus Comestor – Pedro, o Comilão ou o Devorador. Devorador de quê? De livros, naturalmente. Pedro era um leitor insaciável.

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