Acabo de silenciar o rádio que me faz companhia nestes finais de tarde, para ficar a ouvir apenas a música da chuva a tamborilar no telhado e a cair lá fora. Seguro nas mãos um livro antigo, de papel amarelecido e gasto, escrito há um pouco mais de seis décadas pelo meu avô paterno, António José Saraiva, de quem gosto de pensar que herdei o gosto pela leitura. Intitula-se simplesmente Camões.

Os livros às vezes também vêm aos pares, como as cerejas e as conversas, e este em que agora me detenho vem atrás (ou à frente, dependo do ponto de vista) de um outro que decidi finalmente ler de uma ponta à outra. Tal como para certas visitas a países estrangeiros nos preparamos com algumas leituras prévias, também antes de embarcar nesta aventura pel’Os Lusíadas achei por bem informar-me acerca de Camões para retirar o melhor proveito da minha viagem.

E assim dei por mim a ler este estudo que me vinha interpelando de há uns tempos para cá. O quinto centenário do nascimento do poeta forneceu-me o álibi perfeito.

O livro começa com um esboço biográfico: um fidalgo pobre, nascido provavelmente em 1524 e criado em Lisboa, movimenta-se em meios duvidosos. Apesar dos seus pergaminhos, não desdenha dar-se com prostitutas e rufiões. Entre rimas e espadeiradas, acaba detido na Cadeia do Tronco, em 1553, numa altura em que já passou por Ceuta e tem nome feito como poeta. Dali sairá quase direto para uma nau rumo ao Oriente.

«É caso raro um homem de letras ir parar à Índia», diz-nos António José Saraiva. «Esta aventura interessava alguns fidalgos que partiam com nomeações já feitas para comandos ou feitorias onde era certo enriquecerem; ou então aos pobres diabos humildes, sem habilitações, que queriam fugir à estreiteza da vida que lhes era consentida no reino». Evidentemente, Camões não correspondia a qualquer destes tipos. «Os letrados […] amesendavam-se melhor ou pior em funções burocráticas. […] Camões, homem feito, com cerca de 30 anos ou mais, já conhecido como autor de versos e autos, é talvez o único escritor com formação humanística que atravessou os mares. Decerto porque não tinha outra saída para a situação difícil em que se deixou cair em Lisboa».

É interessante pensar como a vida se faz em tão grande medida das circunstâncias – e sem essa queda em desgraça e consequente ida para Goa, que lhe deu o conhecimento daquelas remotas paragens, mas sobretudo dos mares e das navegações transoceânicas, Camões jamais poderia ter escrito a sua epopeia. O mesmo se pode dizer dos tormentos e aflições por que passou: também as prisões, os desgostos de amor, a perda do olho numa batalha em Marrocos, as rixas, as dívidas, o quase fatídico naufrágio no Mecom (ou Mekong), foram decisivos para a sua obra.

Como tão bem colocaria o romancista francês Marcel Proust: «Os livros, como os jactos artesianos, só atingem a altura das profundezas de onde provêm». E Camões desceu bem fundo, como fica claro nos seus derradeiros dias, em que vive de esmolas recolhidas pelo seu escravo. Quando morre, não possui sequer um lençol que lhe sirva de mortalha.

Confortavelmente instalado a ouvir a chuva a cair lá fora, penso que qualquer outro ficaria diminuído ou mesmo esmagado por tamanhas adversidades. Camões não. É um caso raro, ou mesmo único, de alguém cuja grandeza se afirmou na exata medida da sua miséria.

QOSHE - Grandeza e miséria de Camões - José Cabrita Saraiva
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Grandeza e miséria de Camões

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05.04.2024

Acabo de silenciar o rádio que me faz companhia nestes finais de tarde, para ficar a ouvir apenas a música da chuva a tamborilar no telhado e a cair lá fora. Seguro nas mãos um livro antigo, de papel amarelecido e gasto, escrito há um pouco mais de seis décadas pelo meu avô paterno, António José Saraiva, de quem gosto de pensar que herdei o gosto pela leitura. Intitula-se simplesmente Camões.

Os livros às vezes também vêm aos pares, como as cerejas e as conversas, e este em que agora me detenho vem atrás (ou à frente, dependo do ponto de vista) de um outro que decidi finalmente ler de uma ponta à outra. Tal como para certas visitas a países estrangeiros nos preparamos com algumas leituras prévias, também antes de embarcar nesta aventura pel’Os Lusíadas achei por bem informar-me acerca de Camões para retirar o melhor proveito........

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