Neste penúltimo sábado antes do Natal fui com a minha família à Baixa/ Chiado e fiquei impressionado. Impressionado não com as multidões de turistas, que já esperava, nem com a sofisticação da Lisboa moderna, mas com o comércio descaracterizado, as lojas e restaurantes de plástico (e não me refiro à comida), as manifestações inimitáveis de luxo parolo.

O elétrico, que partiu de Algés, despejou-nos no Terreiro do Paço, onde havia músicos a tocar batuques e artistas de rua a lançar no ar bolas de sabão gigantes, iridescentes, que faziam as delícias da miudagem. Como cantava Carlos do Carmo, “parecem bandos de pardais”…

Na Rua Augusta, os suspeitos do costume: Calzedonias, Zaras e Ale Hops. Os migrantes que vendiam malas contrafeitas Gucci e Louis Vuitton tiveram de pegar nas suas mercadorias à pressa e debandar por causa da ronda da polícia, enquanto os turistas assistiam satisfeitos a partir das esplanadas de tapas com nomes em inglês.

Continuando na Rua Augusta, a Camisaria Pitta é agora uma ‘manteigaria’ (nome antigo para um negócio moderno de pastéis de nata), a Nunes Corrêa é a Intimissimi, onde hoje já não me atreveria a comprar o fato para o meu casamento, e a sapataria Lord está fechada há não sei quantos anos.

Mas devo dizer que foi reconfortante entrar na Casa Macário, onde cheirava a café acabado de moer, e ser atendido por um senhor que falava um português correto e estava certamente há muito tempo atrás daquele balcão. Chamei a atenção dos meus filhos para as datas nas garrafas de vinho do Porto: 1963, 1948, 1927, 1908… e até um, pareceu-me, da década de 1850! É alucinante pensar em como o mundo mudou desde então.

Depois desse banho de autenticidade, seguimos para o Rossio, onde havia um pequeno mercado de Natal. Um senhor abordou-nos para nos tirar uma fotografia na companhia de um boneco. ‘É oferta?’, perguntei. ‘Sem compromisso’. Recusei e ele fingiu-se indignado: ‘Não quer uma fotografia com a sua família!’. Até parecia que, se não fosse a generosidade dele, jamais teríamos uma fotografia todos juntos.

Na Avenida da Liberdade o verdadeiro requinte convive paredes-meias com a ostentação mais parola e postiça. Um dos nossos filhos, adolescente, quis fazer uma peregrinação a uma loja de ténis que pertence a um influencer e que pelos vistos está muito na moda.

Lá dentro, uma cave branca que poderia ser de uma galeria de arte moderna, ele vinha de minuto a minuto mostrar-nos um qualquer modelo de calçado que nada parecia ter de especial a não ser a etiqueta do preço. Havia pares a mais de mil euros! Senti-me muito pobre – mas achei mais pobre ainda todo aquele culto em torno dos ténis de marca.

Lá fora havia sem-abrigo com os seus cartões instalados nos recessos dos prédios.

Descemos a Avenida da Liberdade e foi com pesar que descobri que o Pirata nos Restauradores já não está aberto. Em compensação, a Starbucks da estação do Rossio funcionava a todo o vapor.

Subimos ao Chiado e antes do regresso fizemos uma última paragem na Flying Tiger, um franchise dinamarquês de coisas úteis e inúteis, na esquina da Rua Nova do Almada com a Rua Garrett. Um dos meus filhos queria comprar um brinquedo igual ao que tinha recebido dias antes e que o irmão mais novo tinha partido.

Já sabia que a livraria Férin estava de portas fechadas – uma provável consequência da morte do seu proprietário, o empresário e livreiro José Pinho – mas foi na mesma um choque ver as montras tapadas com papel pardo.

Com os seus móveis antigos, e alguns dos melhores livros protegidos detrás das portas de vidro, que descobri um dia que se podiam abrir sem pedir autorização, esta era para mim sem dúvida a mais bonita livraria de Lisboa. Tive a sorte de a frequentar bastante e até de o Sr. João Paulo Pinheiro, que lá trabalhou durante mais de 40 anos, me fazer simpáticos descontos.

O fecho da Férin é um sinal dos tempos. O problema nem é o turismo, o problema é que Lisboa está a ser invadida por hordas de bárbaros. E os bárbaros, como toda a gente sabe, não gostam de ler, pois não? Mas será apenas Lisboa?

A caminho da estação do Cais do Sodré, em contrapartida, gostei de ver que algumas das mercearias da Rua do Arsenal, como o Rei do Bacalhau e a Pérola do Arsenal, ainda resistem. Assim continuem muitos anos.

Chegámos a casa já de noite. Numa questão de minutos, o brinquedo da Tiger estava partido, enquanto, na cozinha, o saco da Casa Macário continuava a libertar um cheiro maravilhoso a café acabado de moer.

QOSHE - As invasões bárbaras – uma visita à Baixa/ Chiado - José Cabrita Saraiva
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As invasões bárbaras – uma visita à Baixa/ Chiado

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22.12.2023

Neste penúltimo sábado antes do Natal fui com a minha família à Baixa/ Chiado e fiquei impressionado. Impressionado não com as multidões de turistas, que já esperava, nem com a sofisticação da Lisboa moderna, mas com o comércio descaracterizado, as lojas e restaurantes de plástico (e não me refiro à comida), as manifestações inimitáveis de luxo parolo.

O elétrico, que partiu de Algés, despejou-nos no Terreiro do Paço, onde havia músicos a tocar batuques e artistas de rua a lançar no ar bolas de sabão gigantes, iridescentes, que faziam as delícias da miudagem. Como cantava Carlos do Carmo, “parecem bandos de pardais”…

Na Rua Augusta, os suspeitos do costume: Calzedonias, Zaras e Ale Hops. Os migrantes que vendiam malas contrafeitas Gucci e Louis Vuitton tiveram de pegar nas suas mercadorias à pressa e debandar por causa da ronda da polícia, enquanto os turistas assistiam satisfeitos a partir das esplanadas de tapas com nomes em inglês.

Continuando na Rua Augusta, a Camisaria Pitta é agora uma ‘manteigaria’ (nome antigo para um negócio moderno de pastéis de nata), a Nunes Corrêa é a Intimissimi,........

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