Devia andar pelos meus 20 anos quando adquiri um exemplar d’Os Lusíadas, fac-símile da ‘Edição Nacional’. Formato pequeno, capa encarnada, hoje já um pouco comida pelo sol, com prefácio de Carolina Michaëlis de Vasconcelos. A data de impressão confere: julho de 1999. Mas como é possível que ao longo destes 24 anos nunca tenha ganho coragem para ler mais do que uns versos soltos ou avançar umas quantas páginas?
Ultimamente tenho-me interrogado acerca dos motivos dessa ‘relutância’. E concluí que se conjugaram (conspiraram?) uma série de condições. Para começar, o próprio local da aquisição, uma ‘agência’ da Imprensa Nacional – Casa da Moeda no piso -1 do centro comercial Colombo, à saída da estação de Metro, não me deixou grandes recordações. Mais decisivo, porém, foi o aparato crítico que acompanha esta edição. Por uma razão que agora não vem ao caso, só dou um livro como lido quando o varri de uma ponta à outra – prefácio, notas, bibliografia, tudo incluído. Ora, durante estes anos o prefácio de Carolina Michaëlis revelou-se um obstáculo intransponível. Ou melhor: o prefácio nem seria um problema de maior se não soubesse que havia ainda as notas no final. Se queria ler os versos de Camões, teria de gramar com mais de 200 páginas de ‘apêndices’. E assim a edição nacional d’Os Lusíadas foi ficando de parte… Até há uns poucos dias. Mas houve ainda um terceiro motivo, talvez o que mais pesou. Como toda a gente, quando era jovem estudei Os Lusíadas na escola. Não me deixaram más memórias e muito menos me traumatizaram – embora continue a achar que a divisão dos versos em sílabas não é a abordagem mais inteligente. E até me ficaram na memória algumas belas rimas do Canto IX que li tantas vezes que não mais as esqueci: «Desta arte, enfim, conformes já as formosas Ninfas co’os seus amados navegantes, Os ornam de capelas deleitosas De louro e de ouro e de flores abundantes. As mãos alvas lhe davam como esposas; […]» Não, o problema não foi não gostar do que li: foi antes ficar com a ilusão de que já conhecia a obra, de que sabia o que lá iria encontrar. Lê-los seria como viajar para um país conhecido ou, para usar uma metáfora mais apropriada, andar por mares já dantes navegados. É verdade que algumas passagens são já velhas conhecidas, e por isso não produzem aquela sensação de frescura de algo que se lê pela primeira vez. Mas ainda há espaço para a surpresa. E ela surgiu antes do primeiro verso, no ‘imprimatur’ do inquisidor, Frey Bertholameu Ferreira. Diz ele que leu os dez cantos dos Lusíadas «e não achei neles coisa alguma escandalosa, nem contrária à fé e bons costumes».

Quanto à presença dos deuses pagãos, mostra-se compreensivo: «como isto é Poesia e fingimento […] não tivemos por inconveniente ir esta fábula dos deuses na obra». Desta não estava eu à espera! Ainda não começara a ler o poema de Camões e já tinha a minha primeira revelação. Quem diria que a infame Inquisição poderia mostrar tamanha benevolência?

QOSHE - A primeira surpresa d’Os Lusíadas - José Cabrita Saraiva
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A primeira surpresa d’Os Lusíadas

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12.04.2024

Devia andar pelos meus 20 anos quando adquiri um exemplar d’Os Lusíadas, fac-símile da ‘Edição Nacional’. Formato pequeno, capa encarnada, hoje já um pouco comida pelo sol, com prefácio de Carolina Michaëlis de Vasconcelos. A data de impressão confere: julho de 1999. Mas como é possível que ao longo destes 24 anos nunca tenha ganho coragem para ler mais do que uns versos soltos ou avançar umas quantas páginas?
Ultimamente tenho-me interrogado acerca dos motivos dessa ‘relutância’. E concluí que se conjugaram (conspiraram?) uma série de condições. Para começar, o próprio local da aquisição, uma ‘agência’ da Imprensa Nacional – Casa da Moeda no piso -1 do centro comercial Colombo, à saída da estação de Metro, não me deixou........

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