Há meia dúzia de anos, estando eu a preparar uma entrevista ao prestigiado capista norte-americano Peter Mendelsund, achei por bem, naturalmente, ir espreitar o seu trabalho. Entre as capas da sua autoria, houve uma que me chamou a atenção pela elegância despojada, mas sobretudo pelo título que ostentava: A natural history of the piano, ‘Uma história natural do piano, de Stuart Isacoff. O subtítulo era igualmente sugestivo: ‘O instrumento, a música, os músicos – de Mozart ao Jazz Moderno, com tudo o que há pelo meio’.

Podia ser o livro sobre piano de que eu, sem o saber, andava há muito à procura.

Escolher um livro pela capa constitui, reconheçamos, um passo arriscado, se bem que uma capa bonita possa constituir um bom indicador. Como defendia o romano Vitrúvio, autor do primeiro tratado de arquitetura que chegou até nós, é desejável que haja coerência entre o exterior e o interior de um edifício – e o mesmo se poderia dizer acerca da relação entre a capa e o miolo de um livro.

Por onde começar? Esta ‘história natural’ do instrumento e dos músicos está repleta daqueles episódios incríveis que tornam a leitura apaixonante. Isacoff conta, por exemplo, o caso do único pianista que morreu no palco do famoso Carnegie Hall, o desafortunado virtuoso russo-americano Simon Barere. «A 2 de abril de 1952, estava mesmo a começar o concerto para piano e orquestra de Grieg quando sucumbiu a uma hemorragia cerebral».

Menos dramática é a história de um certo pianista que pagava a uma senhora do público para fingir um desmaio a meio da sua atuação. Porquê? Porque ele atacava o teclado com um tal ímpeto e uma tal velocidade que não seria capaz de manter o ritmo até ao final. Daí o desmaio dar tanto jeito.

Só que um certo dia a dita senhora adormeceu efetivamente… o que deixou o pianista em maus lençóis. Como sair da situação sem deixar perceber a sua incapacidade? Como talvez já tenham adivinhado, este homem não se deixava atrapalhar. Se a senhora teimava em não desmaiar, desmaiava ele. «O público precipitou-se para ajudar o pianista, que era ainda mais fenomenal, uma vez que juntava ao seu desempenho rápido como um relâmpago uma natureza frágil e sensível», recordou Wanda Landowska nas suas memórias. «Foi levado para o camarim; os homens aplaudiam freneticamente, as mulheres agitavam os seus lenços». Resumindo: um sucesso retumbante.

Claro que não era preciso ser um impostor para triunfar em palco. Leopold de Meyer levava as mulheres ao êxtase quando, a meio de uma peça, esticava a mão direita, apanhava um ramo de flores e continuava a tocar com o ramo preso nos dentes.

Outro gigante do piano fazia um truque idêntico, bebendo um copo de cerveja enquanto tocava a um ritmo alucinante. Nas suas mãos, as peças mais difíceis de executar pareciam uma brincadeira de crianças. «Ponham os melhores pianistas de jazz numa sala», dizia Teddy Wilson, «e ele fará com que pareçam todos amadores». Outro músico de jazz dizia que quem acabasse de chegar a uma sala e o ouvisse perguntaria: «Quem são aqueles dois tipos que estão a tocar?». Não eram dois tipos. Era Art Tatum, um pianista que valia por dois.

QOSHE - A arte de tocar piano com um copo de cerveja na mão - José Cabrita Saraiva
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A arte de tocar piano com um copo de cerveja na mão

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08.03.2024

Há meia dúzia de anos, estando eu a preparar uma entrevista ao prestigiado capista norte-americano Peter Mendelsund, achei por bem, naturalmente, ir espreitar o seu trabalho. Entre as capas da sua autoria, houve uma que me chamou a atenção pela elegância despojada, mas sobretudo pelo título que ostentava: A natural history of the piano, ‘Uma história natural do piano, de Stuart Isacoff. O subtítulo era igualmente sugestivo: ‘O instrumento, a música, os músicos – de Mozart ao Jazz Moderno, com tudo o que há pelo meio’.

Podia ser o livro sobre piano de que eu, sem o saber, andava há muito à procura.

Escolher um livro pela capa constitui, reconheçamos, um passo arriscado, se bem que uma capa bonita possa constituir um bom indicador. Como defendia o romano Vitrúvio, autor........

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