Quando foi eleito presidente do PS, António Costa proclamou, solene: “À Justiça o que é da Justiça, à política o que é da política”. O que pretendia ele com isto? Que o partido deixasse de discutir o caso Sócrates e voltasse a dedicar-se à ação política. E conseguiu-o. Todos os socialistas se calaram, perante o desespero do próprio Sócrates, que desejava mais apoio.
Mas esse tempo já lá vai e hoje quem está em causa é António Costa.
E o que ontem era verdade passou a ser mentira.
As regras mudaram.
Muita gente do PS passa hoje os dias a discutir este processo, e o próprio António Costa vai deitando aqui e ali umas achas para a fogueira.
O facto não me espanta.

Quando Costa se demitiu de primeiro-ministro, argumentando que existia um “processo-crime” contra ele, cheirou-me logo a esturro: por que razão dramatizava o caso, quando até aí tudo lhe passava ao lado?
Por que razão falava em ‘processo-crime’, quando até aí só se falara em ‘inquérito’?
O motivo pareceu-me óbvio: António Costa chamava as atenções sobre ele, desviando-as dos outros suspeitos, cujos casos eram bem mais graves.
Convicto de que a sua situação seria a menos complicada, punha os comentadores a discuti-la, ignorando o resto.
E – como se está agora a ver – acertou em cheio.

Há dias, na TV, Pacheco Pereira lançava as maiores suspeições sobre o Ministério Público – e, interpelado por Lobo Xavier, respondeu: «Eu estou a falar do caso do primeiro-ministro, sobre os outros não me pronuncio».
António Costa conseguiu pôr o Ministério Público na berlinda. Quem está hoje sob suspeita não são os arguidos – é o MP. Uma procuradora-geral adjunta, Maria José Fernandes, numa iniciativa insólita, publicou um artigo num jornal diário que constituía uma crítica violenta e explícita à forma como este caso está a ser conduzido.
E algumas pessoas com responsabilidade na Justiça, como José Miguel Júdice, elogiaram-na.
Ora, será normal uma procuradora-geral vir a público comentar um processo em curso?
Note-se que ela não criticou o MP em abstrato. Não. Pelo timing e pelos argumentos, ficou claro que a crítica dizia respeito à Operação Influencer, em concreto.
Ao escrever “A oferta de um almoço num restaurante caro será uma vantagem? Em que se traduz essa vantagem? No prazer da degustação? E se o agente não apreciou a refeição?”.
Passe a nota de humor, a procuradora estava a referir-se sem sombra de dúvida aos almoços de Galamba com empresários, dizendo que não tinham qualquer importância (o que é uma ingenuidade da sua parte, como há uma semana demonstrei).
E ao escrever que o MP faz “buscas sem utilidade”, e “humilhantes” para os visados, estava provavelmente a pensar nas buscas que descobriram droga em casa de Galamba e às que ocorreram com grande estrondo na residência oficial do primeiro-ministro (que por acaso descobriram 76 mil euros escondidos).

Pode afirmar-se, pois, sem qualquer reserva, que a procuradora estava a defender o PS e a dar-lhe argumentos para contestar esta operação e criticar o Ministério Público.

António Costa conseguiu, pois, o que queria. Hoje, no PS e fora dele, inclusivamente na Justiça, está toda a gente a discutir a atuação do MP. Garante-se que existem guerras políticas lá dentro, fala-se em cabalas, referem-se métodos duvidosos – e, nessa medida, todo o processo fica em causa, e a queda do Governo não devia ter acontecido.
As coisas estão a ir tão longe, que já houve mesmo um bate-boca entre o primeiro-ministro e o Presidente, com o primeiro a acusar este de ter mentido.

Discute-se quem é que sugeriu a Marcelo que chamasse a PGR a Belém – e chega a insinuar-se que foi Marcelo quem escreveu o tal último parágrafo que falava do ‘inquérito’ a Costa.
A pressão sobre o poder judicial é enorme.
E, para a aumentar, António Costa veio dar o dito por não dito: depois de garantir que a sua vida pública tinha acabado, veio agora dizer que isso pode não ser assim se o processo for célere.
Também aqui, Costa passou a bola para o lado da Justiça: caso esta não ande depressa, será a responsável pelo fim da vida política do atual chefe do Governo.

O clima está a ficar doentio.
A proclamação ‘à Justiça o que é da Justiça…’ passou o seu prazo de validade.
Os tempos de Sócrates regressaram.

Os políticos são uns santos e umas vítimas, e os magistrados que os perseguem são uns escroques; foi exatamente esta a tática usada pelo antigo primeiro-ministro, passando de suspeito a acusador.
E ela tem muitos apoiantes – na esquerda, no centro e mesmo na direita.

QOSHE - Ó tempo, volta p’ra trás - José António Saraiva
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Ó tempo, volta p’ra trás

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25.11.2023

Quando foi eleito presidente do PS, António Costa proclamou, solene: “À Justiça o que é da Justiça, à política o que é da política”. O que pretendia ele com isto? Que o partido deixasse de discutir o caso Sócrates e voltasse a dedicar-se à ação política. E conseguiu-o. Todos os socialistas se calaram, perante o desespero do próprio Sócrates, que desejava mais apoio.
Mas esse tempo já lá vai e hoje quem está em causa é António Costa.
E o que ontem era verdade passou a ser mentira.
As regras mudaram.
Muita gente do PS passa hoje os dias a discutir este processo, e o próprio António Costa vai deitando aqui e ali umas achas para a fogueira.
O facto não me espanta.

Quando Costa se demitiu de primeiro-ministro, argumentando que existia um “processo-crime” contra ele, cheirou-me logo a esturro: por que razão dramatizava o caso, quando até aí tudo lhe passava ao lado?
Por que razão falava em ‘processo-crime’, quando até aí só se falara em ‘inquérito’?
O motivo pareceu-me óbvio: António Costa chamava as atenções sobre ele, desviando-as dos outros suspeitos, cujos casos eram bem mais graves.
Convicto de que a........

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