Dizia-se pelos corredores do Kremlin que Estaline tinha um tal ódio por Liev Davidovich Bronstein que reservara três andares da Praça Lubianka, sede do KGB, para recolher todo o material possível contra o seu figadal inimigo que ficou para a posteridade com o nome de Leon Trótski. Tendo ambos combatido pela sucessão de Lenine, Trótski acabou depurado, como os membros do PCUS (Partido Comunista da União Soviética) gostavam de dizer, obrigado a exilar-se no México, onde nem aí fugiu à saga persecutória do seu inimigo Josef Vissariónovitch Stalin e se viu assassinado por uma besta de 128 patas, Ramón Mercader, que lhe enfiou à falsa fé o bico de uma picareta no alto do cocuruto, no local de Coyoacán, arredores da cidade do México. Tróstky ainda teve tempo para suplicar que não condenassem o animal à morte, gritando: Safou-se. Jaime Ramón Mercader del Río Hernández, também conhecido pelos nomes de Jacques Monard ou Frank Jacson, acabaria por regressar à União Soviética e ser condecorado como Herói do Povo. Nestas coisas não há tergiversações: cada um tem os heróis que merece e ponto final.

Quando a picareta do pulha atingiu o crânio de Liev Davidovich Bronstein, já um argentino, Homero Rómulo Cristalli Frasnelli, que preferia utilizar o pseudónimo de J.Posadas ou «Não o matem! Esse homem tem uma história para contar!». Juan Posadas, tinha 38 anos e passara como um furacão pela equipa do Estudiantes de La Plata durante os anos 20. Era um fulano que conhecera bem a fome e podia, até tratá-la por irmã, tantas tinham sido as fases da sua vida em que viveram sob o mesmo teto, até mesmo quando o teto era o céu e ambos dormiam nas ruas de La Plata, sobretudo nas calles do Barrio de Matera, a zona onde se juntavam os imigrantes italianos como ele e cujo nome de família não enganava ninguém. Não se sabe grande coisa sobre os irmãos Frasnelli, que eram pelo menos nove, e os mais novos se dedicavam a engraxar os sapatos dos senhores mais endinheirados, andando descalços de um lado para o outro com uma caixa de madeira às costas com graxa e escovas lá dentro.

Juan Posadas, como ficou conhecido no mundo do futebol, era um jogador habilidoso mas sem físico para um confronto onde valia tudo, até pontapear os adversários desde que fosse das amígdalas para baixo. Ou seja, um universo não muito aconselhado a um garoto famélico que, por causa da sua debilidade mal nutrida, terá talvez falhado uma grande carreira mas, por outro lado, lhe deixou tempo de sobra para pensar nas injustiças que se acumulavam sob a vontade de um Deus omnipotente que havia feito o homem à sua imagem e semelhança, ou pelo menos assim o ensinaram as suas avós extremamente católicas.

A sua primeira ação, que o aproximou do pensamento comunista, deu-se em Córdoba onde organizou uma união de sapateiros e de trabalhadores das fábricas de curtumes. Juntou-se ao Partido de la Revolución Socialista, que durou pouco tempo, e em 1947, na companhia do seu camarada Dante Minazoli, fundou o Grupo Cuarta Internacional, com forte influência das ideias trotstkistas. Mas não se ficou por aí aquele cérebro que absorvia informações como uma esponja. Ao ler a descrição feita por Julius Obsequens, um romano que terá vivido em meados do quarto século antes de Cristo, sobre testemunhas que se entretinham a observar tudo de estranho que se passava no céu, desde auroras boreais a cometas a outros fenómenos sem explicação, material que ficou reunido num volume que levou o título de De Prodigiis Liber, avançou para uma linha de pensamento próprio, o Posadismo, que defendia, à partida, que uma III Grande Guerra era não apenas desejável como até inevitável para que, no final, se criassem condições para o estabelecimento de Estados de Trabalhadores. Em 1968, depois de se ter visto expulso de Cuba, onde quis criar um movimento popular para a ocupação da base americana de Guantánamo, a sua filosofia tornou-se mais confusa. Publicou um opúsculo – Flying Saucers, the Process of Matter and Energy, Science and Socialism – no qual defendia com unhas e dentes uma ligação fraternal entre a vida extraterrestre e o comunismo. Atingira um estado de egocentrismo irreversível. E terminava todas as intervenções com um grito: «Viva el camarada Posadas!». Nada mal para quem nunca tinha marcado um golo.

QOSHE - Um ego do tamanho do mundo para quem nunca marcou um golo - Afonso De Melo
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Um ego do tamanho do mundo para quem nunca marcou um golo

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02.04.2024

Dizia-se pelos corredores do Kremlin que Estaline tinha um tal ódio por Liev Davidovich Bronstein que reservara três andares da Praça Lubianka, sede do KGB, para recolher todo o material possível contra o seu figadal inimigo que ficou para a posteridade com o nome de Leon Trótski. Tendo ambos combatido pela sucessão de Lenine, Trótski acabou depurado, como os membros do PCUS (Partido Comunista da União Soviética) gostavam de dizer, obrigado a exilar-se no México, onde nem aí fugiu à saga persecutória do seu inimigo Josef Vissariónovitch Stalin e se viu assassinado por uma besta de 128 patas, Ramón Mercader, que lhe enfiou à falsa fé o bico de uma picareta no alto do cocuruto, no local de Coyoacán, arredores da cidade do México. Tróstky ainda teve tempo para suplicar que não condenassem o animal à morte, gritando: Safou-se. Jaime Ramón Mercader del Río Hernández, também conhecido pelos nomes de Jacques Monard ou Frank Jacson, acabaria por regressar à União Soviética e ser condecorado como Herói do Povo. Nestas coisas não há tergiversações: cada um tem os........

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