Os autores latino-americanos escrevem como nenhuns outros no que diz respeito à literatura da imagem. Há, por assim dizer, uma espécie de irreversibilidade em cada frase mesmo que seja a frase inicial de um livro. Querem um exemplo? Tomem lá: «Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo». E, de repente, dou comigo a pensar que Cem Anos de Solidão podia muito bem ter terminado aqui. Ainda bem que não parou. Osvaldo Soriano também tem um início que vale quase tanto como uma das três aberturas que Ludwig van Beethoven fez para a única ópera que compôs, Fidelio: «El penal más fantástico del que yo tenga noticia se tiró en 1958 en un lugar perdido del valle de Río Negro, en Argentina, un domingo por la tarde en un estadio vacío». Depois continua e conta-nos sobre a existência de um clube chamado Estrella Polar, um grupo de compinchas que jogavam às cartas e ao bilhar e, volta e meia, se juntavam na margem do rio para fazerem peladas com uma bola de borracha e tiveram, mais tarde, a ideia de que precisavam de participar no Campeonato do Vale só porque aos domingos não havia mais nada para fazr e o vento levantava a areia em exagero. «Los jugadores eran siempre los mismos, o los hermanos de los mismos. Cuando yo tenía quince años, ellos tendrían treinta y me parecían viejísimos». Triste costuma ser o destino dos jovens que ficam velhos ainda jovens.

De um dia para o outro, o clube dos amigos das cartas e do bilhar começou inexplicavelmente a ganhar. Ninguém entendia aquele fenómeno porque todos eles eram realmente maus jogadores. E, no entanto, venciam jogos atrás de jogos e deram por si no topo da classificação deixando para segundo o Deportivo Belgrano que era o campeão crónico do Vale. O conto de Osvaldo Soriano devia ser obrigatório no ensino primário porque é com textos como este que a imaginação se desenvolve e a escrita ganha o brilho de, como direi, de uma Estrela Polar, por exemplo, porque há várias, embora geralmente o termo se refira à Polaris, a estrela mais brilhante da constelação da Ursa Menor. «Las ca nchas se Il enaban para verlos perder de una buena vez. Eran lentos como burros y pesados como roperos, pero marcaban hombre a hombre y gritaban como marranos cuando no ten ian la pelota». É também assim que se aprende o inevitável Destino dos homens. Porque ganhavam, todos se juntavam em redor dos campos de terra batida com a ansiedade de os ver perder. «EI publico se divertia con eso y nosotros, que por ser menores jugabamos los saba dos, no nos expl icabamos como ganaban si eran tan malos». Ah! A magia intrínseca do futebol. Poder ser mau e ganhar. Poder ganhar contra a lógica, contra a regra do mais forte, contra uma qualquer decisão divina de um deus-pé-rapado que se sente na autoridade de impor a sua lei.

Os horríveis triunfos do Estrella Polar levaram-no a lutar pelo campeonato até à última jornada. E logo num jogo contra o Belgrano que na primeira volta tinha ganhou aos infelizes irmãos que eram sempre os mesmos por 7-0. A favor do Estrella juntou-se uma aldeia inteira de quinhentas pessoas, se não irmãos dos irmãos pelo menos primos e tios e parentes o mais próximos possível. O árbitro, um epilético que se chamava Herminio Silva esteve sossegado enquanto o Belgrano foi ganhando mas depois deu-se um daqueles milagres pavorosos para um árbitro corrupto – a epilepsia não impediu Alexandre O Grande e Napoleão de serem quem foram – e a reviravolta sucedeu: 2-1 para os pobres diabos e foi um ver se te avias: Colo Rivero, lateral direito do Estrella, quase ficou surdo quando Herminio apitou estridentemente ao seu ouvido um penalti que ninguém viu se não ele. Colo tinha maus fígados. Acertou em cheio com o punho no nariz do árbitro que ficou estendido sem dar acordo de si. Veio a guarda. Houve porrada de criar bicho. O jogo foi interrompido e faltavam vinte segundos para o final. Seriam jogados no domingo seguinte sem público nas bancadas. Precisamente às três da tarde, Gauna chutou o penalti adiado, mas Hermínio voltou a cair por terra, agora por conta de um ataque epilético. O fiscal de linha tomou a responsabilidade de mandar repetir o lance. Gauna deu lugar a Padini, mas El Gato, keeper do Estrella, defendeu com uma elegância felina. O árbitro já estava em pé, amparado, e soprou o apito tão baixinho que mal se ouviu. Depois, os irmãos dos irmãos, esgotaram toda a cerveja que havia nas bodegas de Belgrano.

QOSHE - Triste é o destino dos jovens que são velhos - Afonso De Melo
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Triste é o destino dos jovens que são velhos

7 0
24.01.2024

Os autores latino-americanos escrevem como nenhuns outros no que diz respeito à literatura da imagem. Há, por assim dizer, uma espécie de irreversibilidade em cada frase mesmo que seja a frase inicial de um livro. Querem um exemplo? Tomem lá: «Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo». E, de repente, dou comigo a pensar que Cem Anos de Solidão podia muito bem ter terminado aqui. Ainda bem que não parou. Osvaldo Soriano também tem um início que vale quase tanto como uma das três aberturas que Ludwig van Beethoven fez para a única ópera que compôs, Fidelio: «El penal más fantástico del que yo tenga noticia se tiró en 1958 en un lugar perdido del valle de Río Negro, en Argentina, un domingo por la tarde en un estadio vacío». Depois continua e conta-nos sobre a existência de um clube chamado Estrella Polar, um grupo de compinchas que jogavam às cartas e ao bilhar e, volta e meia, se juntavam na margem do rio para fazerem peladas com uma bola de borracha e tiveram, mais tarde, a ideia de que........

© Jornal SOL


Get it on Google Play