Huánuco fica na zona do velho Império Inca e não longe do lugar onde se prolongou a Guerra dos Dois Irmãos, Huascar Capac e Atahualpa Yupangi, antes de chegarem os guerreiros de ferro de Cortez que, com as suas armaduras e as suas espadas de aço de Toledo, destruíram uma das civilizações mais extraordinárias que a Terra jamais viu. Eu já estive por lá, atravessando o vale que vai de Churubamba a Ticlacayán, as montanhas secas onde os revolucionários do Sendero Luminoso escreviam as mensagens gigantes que se viam a quilómetros de distância, aldeias em que as mulheres usam chapéus de coco e os lamas repartem os quintais a meias com as galinhas. Foi em Huánuco que, no Verão de 1986, numa partida de futebol disputada no Estádio Modelo entre o Deportivo Junín e o León de Huánuco, que Hugo Sotil, o treinador do Deportivo, sentiu que o seu avançado-centro estava demasiado cansado para dar luta aos violentos centrais contrários que o massacram a joelhadas nos rins e no fígado de cada vez que saltavam com ele a uma bola vinda do céu. Então fez aquilo que qualquer treinador faria: tirou o ponta-de-lança e meteu outro. O gesto ficou marcado para sempre na história de Hugo Sotil e do futebol peruano: era a última vez que o grande jogador que foi Hugo Sotil pisava um relvado. Isto é: Sotil substituíra-se a si próprio. Afinal era jogador-treinador para isso mesmo.

Hugo Alejandro Sotil Yerén era o nome completo de El Cholo Sotil. ESotil foi suficientemente bom para fazer a dupla de estrangeiros do Barcelona na época de 1973-74 juntamente com Johan Cruyff. Com os dois no onze principal, o Barça foi a Madrid golear o Real por 5-0 e El Cholo marcou o quinto da tarde, já quando o sol ameaçava pôr-se e as folhas das árvores caíam, secas e castanhas, por toda La Castellana, sopradas por um vento duro de Fevereiro. No fim, Luis Molowny, treinador merengue, encolheu os ombros e limitou-se a dizer: «Caray! Hacía años que no veía un punta tan sensacional como este tío!». Mas Sotil não ficou muito tempo no Barcelona. Rinus Michels, O General, tinha pouca paciência para a sua vida pouco regrada e para a sede desmesurada que o fazia despejar pelas goelas litros de cerveja e de pisco sour. «Por favor, una cerveza para ahora y otra para ahorita», parecia ser a sua frase preferida.

Em 1970, a equipa do Peru fez sensação no Mundial e só foi afastada pelo Brasil impossível de Gerson e Clodoaldo, Jairzinho, Rivelino, Tostão e Pelé nos quartos-de-final (2-4). Sotil estava lá, jogando lado a lado com Cubillas,Chumpitaz, Gallardo e Pedro Léon. A melhor seleção peruana de todos os tempos teimam alguns sem olhar para trás. Um ano antes tinha sido campeã da América do Sul. E os adeptos gritavam pelas ruas de Lima (La Fea): «Perú Campeón/es un grito que repite la afición». O realizador Bernardo Batievsky fez mesmo um filme sobre ele. Chamava-se simplesmente Cholo.

Com a chegada de Johan Neeskens, Sotil perdeu o lugar de estrangeiro no Barcelona e regressou a casa para vestir a camisola do Alianza Lima juntamente com Teofilo Cubillas. Continuava a beber como uma esponja e isso entrava pelos olhos dentro de qualquer amblíope, bastava prestar atenção à sua cara inchada e aos seus olhos cada vez mais pequenos e mais estreitos até que se resumiram a frinchas. Uma cançoneta recordava as suas horas de glória: «En la línea de Campolo/Villanueva y ‘Tito’ Drago/cabe otro maestro y mago/Hugo Sotil nuestro cholo». Mas a vida de Hugo já tinha muito pouco de gloriosa. Era passada, dia a dia, no fundo das garrafas de cerveja e de tequila. Já qualquer clube lhe servia. Jogou pelo Independiente de Medellín, da Colômbia, mas já não conseguia ficar muito longe de casa. Em 1982, depois de ter feito duas épocas no Universitario de Deportes, decidiu terminar a carreira. Faltava-lhe dinheiro, no entanto. Por isso voltou em 1984 para se arrastar penosamente ao serviço do Los Espartanos, um pequenino clube da pequenina cidade de Pacasmayo. Já ninguém repetia, no estádios, a canção preferida dos que em tempos o adoravam: «Su dribleo es el disloque/su servicio es magistral/y si en el Municipal/bien vale por medio equipo/es peruano prototipo/dentro del fútbol mundial». Foi preciso que o treinador do Deportivo Junín, Hugo Stil, percebesse que o seu ponta-de-lança, Hugo Sotil, estava acabado, substituindo-o para a última ovação da sua carreira. As montanhas que ladeavam o vale de Churubamba calaram de vez a saudade de El Cholo. Lá muito alto, como testemunha silenciosa, o condor passou…

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Só o condor foi testemunhada tarde triste de Churubamba

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27.02.2024

Huánuco fica na zona do velho Império Inca e não longe do lugar onde se prolongou a Guerra dos Dois Irmãos, Huascar Capac e Atahualpa Yupangi, antes de chegarem os guerreiros de ferro de Cortez que, com as suas armaduras e as suas espadas de aço de Toledo, destruíram uma das civilizações mais extraordinárias que a Terra jamais viu. Eu já estive por lá, atravessando o vale que vai de Churubamba a Ticlacayán, as montanhas secas onde os revolucionários do Sendero Luminoso escreviam as mensagens gigantes que se viam a quilómetros de distância, aldeias em que as mulheres usam chapéus de coco e os lamas repartem os quintais a meias com as galinhas. Foi em Huánuco que, no Verão de 1986, numa partida de futebol disputada no Estádio Modelo entre o Deportivo Junín e o León de Huánuco, que Hugo Sotil, o treinador do Deportivo, sentiu que o seu avançado-centro estava demasiado cansado para dar luta aos violentos centrais contrários que o massacram a joelhadas nos rins e no fígado de cada vez que saltavam com ele a uma bola vinda do céu. Então fez aquilo que qualquer treinador faria: tirou o ponta-de-lança e meteu outro. O........

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