Os irmãos Raicevich eram danados para a porrada. Tinham tamanho para isso, é preciso dizê-lo, sobretudo, com perdão desta misturada frase, quando começaram a ter tamanho para andar à bofetada nas ruas e pracetas de Trieste, ainda antes de esta magnífica cidade do Adriático ter passado para as mãos do Império Austro-Húngaro. Falo dos últimos anos do século XVIII, mesmo à beirinha do XIX. Roberto Massimo e Emilio Ruggerio eram os mais dados a lutar só por lutar, aquilo que nós começámos por chamar de luta-livre e os britânicos de ‘wrestling’ (expressão que os norte-americanos utilizariam mais tarde para aquela espécie de palhaçada em cima de um ringue), sendo que os franceses patrioticamente trataram de apelidar de luta francesa, um termo utilizado para o que é a também tida como luta greco-romana, sendo que os especialistas se rebelaram maioritariamente contra esta última designação. Mas, não percamos o fio à meada, e voltemos aos irmãos Raicevich e, principalmente, àquele do qual ainda não falei e que foi o mais conhecido de todos eles: Giovanni Raicevich.
Aposto que já olharam para a fotografia do bom Giovanni, aí ao lado, e já o terão classificado com vários adjetivos, do ridículo ao grotesco. Eram assim os lutadores do seu tempo, muitos outros até com figuras muito mais atarracadas. Neste caso sou muito a favor do domador de leões do Circo Areola Paramés. Farto de um fulano que, no sossego do exterior da jaula, resolveu apepiná-lo à custa de frases como «isso é tudo uma aldrabice!», «o leão foi drogado, está meio a dormir!», «isso é só para enganar a malta!» e por aí fora, se limitou a responder: «Anda dizer isso cá para dentro». Pois… Acham o nosso mano Raicevich mais novo um bocado bizarro? Gostava de vos ver dizerem isso em voz alta com o sujeito pela frente.

A família Raicevich sempre esteve ligada ao exercício físico pois o pai abriu um ginásio num tempo em que os ginásios eram coisa rara, sobretudo em Trieste. Pobretes mas alegretes, fomentavam rivalidades de bairro ou mesmo de rua para cobrarem uns tostões aos que estavam dispostos a desembolsá-los para ver dois calmeirões em cima de um ringue, agarrando-se um ao outro, torcendo braços, amarrotando cotovelos, amachucando rótulas e pingando suor até que um deles desse as tais três palmadas no chão que tinham o peso das pancadas de Moliére mas ao contrário: serviam para indicar desistência e acabar com o espetáculo em vez de anunciarem que estava prestes a começar.

Em 1902, os manos Raicevich meteram-se num barco rumo a Alexandria, no Egito, para o seu primeiro grande debute internacional, tendo todos eles regressado com medalhas espetadas nas volumosas peitaças. Foi um ano particularmente especial para Giovanni que se tornou profissional e começou a ser convidado para combater com os grandes lutadores do seu tempo, como foi o caso do sérvio Simon Antonich, um bicho de imponentes 210 centímetros de altura e 130 quilos de peso, que prometera esmagar os seus 172 centímetros e os seus apenas 110 quilos. Pobre Simon. Não sabia com quem se estava a meter. Raicevich chegou-lhe a roupa ao pelo (embora combatessem sem roupa e praticamente em pelo), vitória essa que teve um expressão internacional intensa. Nos anos que se seguiram, além de campeão da Europa, conquistou o primeiro lugar nos torneios sonantes de Liège, Krefeld e da Vestefália. Em 1906 percorreu a América do Sul colecionando vitórias atrás de vitórias. No ano seguinte, espancou sem piedade o francês Paul Pons, não por acaso alcunhado de ‘Le Colosse’, tal como o fizera uns meses antes ao seu compatriota Laurent le Beaucairois, garantindo dois títulos de campeão do mundo. Depois, já na fase em que Trieste voltou a ser italiana, manteve-se por casa e foi campeão de Itália ininterruptamente desde 1907 a 1929. Um tédio! No entretanto vestiu a farda e cumpriu o seu dever no Exército Italiano nas batalhas de Piave e Isonzo, durante a IGrande Guerra. Ah! Sim. O povo tinha uma paixão assoberbada por Giovanni Raicevich! Se alguns viam nele uma personagem digna de comédia, outros olhos o contemplavam sob a aura de herói. Um checo, Hans Kavan, desafiou-o para lutarem. Giovanni aceitou mas avisou desde logo que seria a última luta da sua vida. Como é óbvio, ganhou-a. Em seguida entregou-se à disposição do realizador Ubaldo Maria Del Colle que o transportou para o cinema fazendo de Maciste, a hercúlea invenção dos livros de Gabriele d’Annunzio e Giovanni Pastrone. Continuava remediado. Nem o sucesso de bilheteira de L’uomo della Foresta lhe garantiu a existência. O Comité Olímpico Italiano entregou-lhe 5000 liras por mês até morrer. Aguentou-se até aos 75: o ano de 1957 levou de vez ‘O Monstro de Trieste’.

QOSHE - O pequenote que se tornou no grande ‘Monstro de Trieste’ - Afonso De Melo
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O pequenote que se tornou no grande ‘Monstro de Trieste’

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22.03.2024

Os irmãos Raicevich eram danados para a porrada. Tinham tamanho para isso, é preciso dizê-lo, sobretudo, com perdão desta misturada frase, quando começaram a ter tamanho para andar à bofetada nas ruas e pracetas de Trieste, ainda antes de esta magnífica cidade do Adriático ter passado para as mãos do Império Austro-Húngaro. Falo dos últimos anos do século XVIII, mesmo à beirinha do XIX. Roberto Massimo e Emilio Ruggerio eram os mais dados a lutar só por lutar, aquilo que nós começámos por chamar de luta-livre e os britânicos de ‘wrestling’ (expressão que os norte-americanos utilizariam mais tarde para aquela espécie de palhaçada em cima de um ringue), sendo que os franceses patrioticamente trataram de apelidar de luta francesa, um termo utilizado para o que é a também tida como luta greco-romana, sendo que os especialistas se rebelaram maioritariamente contra esta última designação. Mas, não percamos o fio à meada, e voltemos aos irmãos Raicevich e, principalmente, àquele do qual ainda não falei e que foi o mais conhecido de todos eles: Giovanni Raicevich.
Aposto que já olharam para a fotografia do bom Giovanni, aí ao lado, e já o terão classificado........

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