José Francisco não era fácil de assoar mas, vendo bem, qual é a equipa que quer um avançado fácil de assoar. Tinha nome de acólito, ou de santinho de catequese, Sanfilippo, mas quando pegava na bola e corria para a baliza dava ares de pássaro bisnau. Fininho, enleante, com mais curvas que uma das donzelas de Modgliani, preferia a conclusão malandra, em habilidade, fazia parte da sua idiossincrasia, se pudesse irritar os adversários até estes começassem a chamar-lhe nomes à mãe, à avó, às cunhadas, à vizinha do quinto esquerdo e à porteira, alvoroçava-se como um galo madrugador e arrepiava a crista. No minuto seguinte, estavam os defesas a tentar caçá-lo à patada convencidos de que perseguiam uma ratazana, e o guarda-redes a calcular como lhe acertar em cheio com os punhos na cartilagem da tiroide, e já a bola tinha ido colar-se no fundo das redes enquanto José Francisco arrepanhava os lábios num sorriso escarninho de quem acabou de fazer uma patifaria valente e ficou feliz da vida com ela.

Às vezes, nos treinos, Sanfilippo pedia para ir à baliza. Achava que era um bom keeper mas, se é de José Francisco que falamos, podem estar certo de que o homem se achava bom em tudo. De qualquer forma baseava essa mania com uma palavreado científico de meia-tijela: «É importante perceber a posição de guarda-redes. Nós, os avançados, já sabemos o que vamos fazer. Eles têm de adivinhar…». E como adivinhar o que ia na cabeça de Sanfilippo quando estava perto da baliza adversária e a bola vinha, como por devoção divina, ter com ele? O público do San Lorenzo de Almagro, onde começou, começava a conter as gargalhadas. Depois era a chacota geral quando José Francisco fazia a sua tratantada favorita: enrolar aquele objeto redondinho, do qual gostava tanto, nos calcanhares para, num gesto que parecia simples mas era tudo menos simples, fazê-lo passar sobre a cabeça do adversário e recolhê-lo do outro lado para carimbar o golo suavemente.

Se alguém afinava com Sanfilippo era Roma, que jogava no Boca Juniors. À baliza, claro, essa é fácil de adivinhar. António Roma era um armário vitoriano, sem arrebiques. Parecia feito de pau-ferro. Só mesmo um sujeito com um descaramento divino, daqueles descaramentos queirosianos de fazer o Raposão levar ao estupor da Titi a camisa de noite da prostituta Mary embrulhada em papel pardo, anunciando antecipadamente que era nem mais nem menos do que a verdadeira coroa de espinhos do Cristo, é que poderia pensar sequer em querer dar baile naquela tremenda peça de mobiliário. Sanfilippo era tão ruim que, numa concentração da seleção Argentina, quando resolveu armar confusão, metendo ao barulho o responsável técnico Don Victorio Spinetto. Como dizem os argentinos, Don Victorio gostava de criar um ambiente que envolvesse «los chistes y las jodas». Então Sanfilippo resolveu mesmo dar cabo da cabeça (e que dura era) de Antonio Roma: «Don Victorio, para a semana há um San Lorenzo-Boca Juniors. Vamos combinar uma coisa: se eu marcar dois golos, o Roma para a próxima não vem à seleção; se não marcar você dispensa-me a mim». Spinetto riu a bom rir. Gostava das tramoias de José Francisco, alinhava em tudo o que pudesse alegrar o grupo, dessa vez nem se importou de deixar Roma com as orelhas a deitar fumo e alinhou no desafio. No dia 12 de outubro de 1962, no Estádio Viejo Gasómetro, na Avenida La Plata, Antonio foi direito ao seu adversário antes de começar o jogo e disse-lhe com tanta fúria que lhe cobriu a cara de perdigotos: «¿A quién le vas a hacer dos goles, enano podrido..?». O anão podre fez um ar compungido como se já arrependido do acordo com Don Victorio. Ou cara podre, se quiserem. Mas, cinco segundos (ouviram bem o que escrevi?), cinco segundos após o início do jogo, Sanfilippo tratou de mostrar ao supedâneo Antonio de que material era feito, e não era de pau-ferro, não senhores, era da mais pura platina, já que estávamos na foz rio de La Plata. Recebeu um passe longo, adiantou-se à bola e, sem que ela tocasse o relvado, deu-lhe de calcanhar sempre em corrida, passando-a por cima de Roma com altura suficiente para que o ‘arquero’ matulão não lhe conseguisse tocar nem mesmo saltando e elevando os braços a uns três metros de altura. Depois, claro, foi golo. José Francisco tinha a plena consciência de que deixara todos os parafusos da cabeça de Antonio fora das rodilhas. No final diria: «Me queria poner lejo de él – era mejor que te agarrara un tren». E deixou-se estar, lá pelo meio-campo, esperando que o keeper digerisse toda aquela bílis. O Boca chegou a dar a volta mas, à beirinha do fim, penálti para Sanfilippo marcar. Não foi de calcanhar mas foi golo. Roma soltou um ferro de fazer apavorar hipopótamos. No jogo seguinte da Argentina, Don Victorio chamou os dois. Brincadeiras à parte, não podia dispensar nenhum deles.

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O nariz de Antonio Roma fumegava como um comboio a carvão

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23.02.2024

José Francisco não era fácil de assoar mas, vendo bem, qual é a equipa que quer um avançado fácil de assoar. Tinha nome de acólito, ou de santinho de catequese, Sanfilippo, mas quando pegava na bola e corria para a baliza dava ares de pássaro bisnau. Fininho, enleante, com mais curvas que uma das donzelas de Modgliani, preferia a conclusão malandra, em habilidade, fazia parte da sua idiossincrasia, se pudesse irritar os adversários até estes começassem a chamar-lhe nomes à mãe, à avó, às cunhadas, à vizinha do quinto esquerdo e à porteira, alvoroçava-se como um galo madrugador e arrepiava a crista. No minuto seguinte, estavam os defesas a tentar caçá-lo à patada convencidos de que perseguiam uma ratazana, e o guarda-redes a calcular como lhe acertar em cheio com os punhos na cartilagem da tiroide, e já a bola tinha ido colar-se no fundo das redes enquanto José Francisco arrepanhava os lábios num sorriso escarninho de quem acabou de fazer uma patifaria valente e ficou feliz da vida com ela.

Às vezes, nos treinos, Sanfilippo pedia para ir à baliza. Achava que era um bom keeper mas, se é de José Francisco que falamos, podem estar certo de que o homem se achava bom em tudo. De qualquer........

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