Confesso que não sei explicar esta sensação que conservo de que, no futebol, a função de guarda-redes é a que fica mais próxima da morte. Lembro-me de Barbosa, o homem que defendeu a baliza do Brasil na dramática final do Mundial de 1950, num Maracanã a rebentar pelas costuras, 200 mil ou mais, vitória do Uruguai. Passados vinte anos contou que, certa vez, ia sentado sossegadamente num autocarro quando uma senhora que levava o neto pela mão o reconheceu e disse para o menino: “Olha! Aquele foi o homem que matou o Brasil!”. Barbosa saiu na paragem seguinte, sentou-se na berma do passeio e chorou. Depois confessou: “Só queria morrer”.

Vasily Ivanovich Lebedev-Kumach, poeta russo, um rapaz satírico, compositor de canções, escreveu a banda sonora para o filme soviético Bpatapb, O Guarda-redes. Alguém, ao fundo canta, ao mesmo tempo que imagens de golos e de defesas vão percorrendo o ecrã: “Guarda-redes prepara-te para a batalha/És uma sentinela perante a tua baliza/Imagina que é a fronteira do Estado/Que está traçada atrás de ti”.

Convenhamos que mais soviético e mais belicoso era difícil. E que não deixa de sugerir, para mais cedo ou mais tarde, uma morte heroica de quem se recusa firmemente a abandonar o seu posto. Há guarda-redes assim: nunca abandonam o seu posto.

Amadeo Raúl Carrizo Larretape, que o mundo do futebol conheceu sempre como Amadeo Carrizo, tinha um metro e noventa e a baliza parecia pequena quando ele, sobre a linha fundamental, abria os braços e ocupava todo aquele espaço enorme em seu redor. Nasceu em Rufino, província de Santa Fé, na Argentina. “Llegará, tangamente, mi muerte enamorada/Yo estaré muerto, en punto, cuando sean las seis/Hoy que Dios me deja de soñar, a mi olvido iré por Santa Fe/Sé que en nuestra esquina vos ya estás/¡Todo de tristeza hasta los pies!”, cantava a voz lavada a whiskies de Amelita Baltar a música de Piazzola. “Amadeo!”, gritavam os hinchas, fascinados com a sua serena categoria quando saída da grande área com a bola colada ao pé direito, fazendo gestos com aqueles braços que pareciam asas às quais Deus se esqueceu de acrescentar penas para que os companheiros avançassem para o ataque. Era uma declaração de confiança, de invencibilidade: “Ide! Ide todos! Cá estarei, sozinho, para defender a fronteira do Estado que fica atrás de mim!”. E chamavam-lhe também Tarzan porque gritava como se estivesse na selva do jogo.

Amadeo tinha tanta confiança em si próprio que não temia jogar sempre o maior tempo possível junto à meia-lua. Era aí que a sua imagem, geralmente azul porque envergava quase sempre camisolas azuis, mais brilhava ao sol da tarde. Os mais velhos lembravam-se dele como avançado. Foi nessa posição que começou a jogar em clubes como o El Fortín e o Buenos Aires Pacífico, quando recuou não foi capaz de recuar tanto como queria, vendo bem, havia um chamado, por assim dizer, uma provocação. Carrizo provocava os adversários mostrando-lhes uma baliza vazia que não tardaria, num instante, a encher com o seu físico de gigante. No River Plate, onde passou treze anos, fez parte de uma equipa mágica que tinha José Manuel Moreno, Félix Loustau, Adolfo Pedernera, Ángel Labruna e o jovem Alfredo Di Stéfano. Era LaMaquina! E o keeper de La Maquina tinha resina nas mãos, as bolas ficavam coladas nas suas luvas, porque foi dos primeiros guarda-redes a nunca dispensar luvas, e ele chamava a isso “encerrar a jogada”, dali não saíam mais, ou pelo contrário, saíam, mas obedecendo à sua vontade, conseguia tranquilamente fazer lançamentos com os braços muito para lá do meio-campo ao mesmo tempo que os adeptos doRiver soltavam “Ohs!” de admiração e depois olhavam uns para os outros sorridentes, sem precisarem de falar, só trocando sorrisos que queriam dizer: “Ninguém como Amadeo, o homem de Santa Fé!”. Jogou no Peru, na Colômbia, foi mantendo-se novo à medida que ficava velho. Ouvia Amelita: “Moriré en Buenos Aires/Será de madrugada, que es la hora en que mueren los que saben morir/Flotará en mi silencio la mufa perfumada de aquel verso que nunca yo te pude decir/Andaré tantas cuadras y allá en la Plaza Francia/Como sobras fugadas de un cansado ballet/Repitiendo tu nombre por una calle blanca se me irán los recuerdos en puntitas de pie”. Morreu em Buenos Aires num dia redondo, 20 de março de 2020. Sempre atento, sempre cavalheiro. Quando lhe perguntavam a que se devia a sua longevidade, não respondia como Bernard Shaw (“Ter nascido há muito tempo”), mas simplesmente: “Bebendo todos os dias uns copos de vinho”. Depois partiu sem mágoas o gigante que nunca abandonava o seu posto…

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Ninguém como Amadeo, o gigante de Santa Fé!!!

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27.12.2023

Confesso que não sei explicar esta sensação que conservo de que, no futebol, a função de guarda-redes é a que fica mais próxima da morte. Lembro-me de Barbosa, o homem que defendeu a baliza do Brasil na dramática final do Mundial de 1950, num Maracanã a rebentar pelas costuras, 200 mil ou mais, vitória do Uruguai. Passados vinte anos contou que, certa vez, ia sentado sossegadamente num autocarro quando uma senhora que levava o neto pela mão o reconheceu e disse para o menino: “Olha! Aquele foi o homem que matou o Brasil!”. Barbosa saiu na paragem seguinte, sentou-se na berma do passeio e chorou. Depois confessou: “Só queria morrer”.

Vasily Ivanovich Lebedev-Kumach, poeta russo, um rapaz satírico, compositor de canções, escreveu a banda sonora para o filme soviético Bpatapb, O Guarda-redes. Alguém, ao fundo canta, ao mesmo tempo que imagens de golos e de defesas vão percorrendo o ecrã: “Guarda-redes prepara-te para a batalha/És uma sentinela perante a tua baliza/Imagina que é a fronteira do Estado/Que está traçada atrás de ti”.

Convenhamos que mais soviético e mais belicoso era difícil. E que não deixa de sugerir, para........

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