Platko mergulhou corajosamente e agarrou a bola com as suas mãos que pareciam tenazes. Por pouco, por muito pouco, as botas do adversário não lhe arrancaram a cabeça. Mas Ferenc Plattkó, nome com que foi batizado em Budapeste, na Hungria, a 2 de dezembro de 1898, era assim: desconhecia o medo. Ergueu-se com a dignidade de uma estátua, uma daquelas estátuas nas quais os pombos têm vergonha de cagar, e olhou em volta, dominando o jogo com o seu olhar perscrutador. Paulino Alcântara, o jogador do Barcelona que disputara com ele a bola assassina, deu-lhe uma palmada no ombro. Reconhecimento de herói para com um seu igual. Pouco meses jogavam juntos com a camisola do clube da Catalunha. Foi aí que Ferenc Plattkó passou a ser chamado de Francisco Platko. O poeta Rafael Alberti, uma das vozes de prata da literatura castelhana, deixou-se encantar pelos gestos valentes de Plattkó. Dedicou-lhe uma ode em 1957. Ode a Platko: “Ni el mar, que frente a ti saltaba sin poder defenderte/Ni la lluvia. Ni el viento, que era el que más rugía/Ni el mar, ni el viento, Platko/rubio Platko de sangre/guardameta en el polvo/pararrayos”.

O futebol está cheio de poesia. Há que procurá-la nas páginas das suas figuras inesquecíveis. A poesia está cheia de futebol: reparem no ritmo, no balanço, na musicalidade de fazer de um verso uma finta. Plattkó, em 1957, estava de regresso a Barcelona, agora para ocupar o lugar de treinador. Correra o mundo. Desde que começara a defender as balizas do Vasas de Budapeste, ainda quase infantil, depois de se ter feito inesquecível no Hungária e ser uma das maiores figuras da história do Barça, depois de ter passado pelo Académico do Porto como treinador, vindo precisamente da sua primeira experiência como técnico na Catalunha, viajou por toda a América, dos Estados Unidos ao Chile e à Argentina, regressando volta e meia à Europa para aceitar contratos em França, na Roménia e em Espanha. Ferenc Plattkó perdia-se na vertigem das viagens. Não era mais o guarda-redes audaz que mergulhava aos pés de avançados de nomes inesquecíveis. Tinha alma e sangue de cigano e caminhava sempre, sem parar, pela mesma medida com que a Terra roda teimosamente em redor do Sol. E Alberti continuava a escrever sobre ele: “Camisetas azules y blancas, sobre el aire/camisetas reales,contrarias, contra ti/volando y arrastrándote/Platko, Platko lejano/rubio Platko tronchado/tigre ardiente en la yerba de otro país/¡ Tú, llave, Platko, tu llave rota!/llave áurea caída ante el pórtico áureo!/No nadie, nadie, nadie,/nadie se olvida, Platko”. Não, nunca ninguém se esqueceria de Ferenc Plattkó, o homem que substituiu nas balizas do Barcelona, o lendário Ricardo Zamora. Foi lenda por lenda, como num negócio de deuses menores e, no entanto, de valores incalculáveis. Não Plattkó, nunca ninguém te esquecerá!

Os irmãos Plakto eram três como os mosqueteiros, só que, ao contrário das personagens de Alexandre Dumas Pai, foram mesmo três sem d’Artagnan dependurado. O d’Artagnan dos Plattkó era Ferenc. Os outros ganharam os nomes espanhóis de Estebán e Carlos. Não tiveram carreira como jogadores no país aqui ao lado, apenas como treinadores, no Valladolid, no Granada, no Maiorca, no Girona e no Sporting de Gijón. Só havia um lugar entre os grandes para um dos Plattkó. É asssim que a História funciona quando escolhe os seus preferidos. Ferenc morreu em Santiago do Chile, a cidade em que chove. Choveu na tarde em que Plattkó, com 84 anos, caminhou de frente, de peito aberto, para os portões da imensa eternidade. Uma ventania bruta fez voar as folhas das árvores da Avenida Bernardo O’Higgins e um vento gelado desceu dos Andes pelo morro de San Cristobal enquanto as águas do Mapocho se tornavam mais escuras do que nunca. “El mar, vueltos los ojos/se tumbó y nada dijo/Sangrando en los ojales/sangrando por ti, Platko/por ti, sangre de Hungría/sin tu sangre, tu impulso, tu parada, tu salto/emieron las insignias/No nadie, Platko, nadie/nadie se olvida”. Também em Santiago ninguém se esqueceu do dia em que morreu Ferenc Plattkó, o guarda-redes imarcescível: 2 de setembro de 1983! Com ponto de exclamação. Trinta anos anos antes, Plattkó tinha sido treinador do ColoColo e da seleção nacional do Chile. Depois partiu, como sempre fazia, a caminho do Barcelona que chamava por ele como uma mãe chama o filho pela janela da infância. Alberti chorou a sua morte, dizem. À distância, o seu poema fazia eco: “¡ Oh, Platko, Platko, Platko/tú, tan lejos de Hungría !/¿ Qué mar hubiera sido capaz de no llorarte ?/Nadie, nadie se olvida/no, nadie, nadie, nadie”.

QOSHE - Mas que mar não saberia chorar pela morte de Platko? - Afonso De Melo
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Mas que mar não saberia chorar pela morte de Platko?

3 1
14.11.2023

Platko mergulhou corajosamente e agarrou a bola com as suas mãos que pareciam tenazes. Por pouco, por muito pouco, as botas do adversário não lhe arrancaram a cabeça. Mas Ferenc Plattkó, nome com que foi batizado em Budapeste, na Hungria, a 2 de dezembro de 1898, era assim: desconhecia o medo. Ergueu-se com a dignidade de uma estátua, uma daquelas estátuas nas quais os pombos têm vergonha de cagar, e olhou em volta, dominando o jogo com o seu olhar perscrutador. Paulino Alcântara, o jogador do Barcelona que disputara com ele a bola assassina, deu-lhe uma palmada no ombro. Reconhecimento de herói para com um seu igual. Pouco meses jogavam juntos com a camisola do clube da Catalunha. Foi aí que Ferenc Plattkó passou a ser chamado de Francisco Platko. O poeta Rafael Alberti, uma das vozes de prata da literatura castelhana, deixou-se encantar pelos gestos valentes de Plattkó. Dedicou-lhe uma ode em 1957. Ode a Platko: “Ni el mar, que frente a ti saltaba sin poder defenderte/Ni la lluvia. Ni el viento, que era el que más rugía/Ni el mar, ni el viento, Platko/rubio Platko de sangre/guardameta en el polvo/pararrayos”.

O futebol está cheio........

© Jornal SOL


Get it on Google Play