Os amigos tratavam-no por Jack mas Jack nasceu de uma parceria bem mais sofisticada de nomes: o pai era Léo-Alcide Kéroack e a mãe Gabrielle-Ange Lévesque. Para ajudar, a família estabelecera residência no Canadá, no Quebeque, em St-Hubert-de-Rivière-du-Loup. Os Kéroack, que depois Jack transformou em Kerouac eram gente remediada. Léo-Alcide trabalhava numa impressora e ajudava o pastor da comunidade jesuíta da terriola. Gerard, o irmão mais novo de Jack, morreu com apenas nove anos, algo que baralhou, e muito, a cabeça do futuro escritor que, nesse tempo, se dedicava sobretudo à prática de futebol americano de forma a conseguir, como é comum nos Estados Unidos, para onde se haviam mudado entretanto, uma bolsa de mérito desportivo para entrar na universidade. Isto passou-se, portanto, em Lowell, no Massachussets, e o rapaz decidido e teimoso acabou por ser aceite na Universidade de Columbia.

Há um livro de Kerouac (Vanity of Dulouz) que confesso nunca ter lido – parece que nem sequer há versão portuguesa – em que este decide explicar, finalmente (foi um dos últimos e já editado postumamente), porque é que deixou de jogar futebol. A culpa, segundo Jack, foi de uma besta de 126 patas chamada Lou Little e era seu treinador. No livro, Little passa a Libble, mas leva uma grande carga de porrada literária, sem dó nem piedade. O mamífero é descrito, pelo que consegui encontrar num desses sinistros labirintos da internet, como um fanático do treino e um cabeça-dura que teimava que Jack repetisse até à exaustão a mesma jogada. Um choque entre cabeças-duras pode deixar umas amolgadelas nos respetivos crânios, mas o que é isso comparado com uma luta de bisontes? Kerouac borrifou-se para Little (ou Libble) e desandou da equipa para fora. Aliás desandou de toda a Columbia para fora. Para utilizar uma expressão que lhe era particularmente significativa, fez-se à estrada.

Digo fez-se à estrada e logo emendo: fez-se ao mar. Alistou-se na Marinha e, terminada a instrução, passou para a Marinha Mercante. Era um diletante, escrevia umas coisas aqui e ali par alimentar os vícios próprios da juventude, juntou-se num triunvirato que era composto por Allen Ginsberg e William Burroughs e ele mesmo, mas a qualidade da sua literatura mexeu com a sociedade norte-americana de então, principalmente pelo conceito de liberdade e de inquietação que explorou até ao tutano lado a lado com Neal Leon Cassady e com a sua quase-virgem mulher de 16 anos. Jack e Neal andaram tanto de carro que tornaram a Route 66, que começava em Chicago, llinois, e passava pelos Estados de Missouri, Kansas, Oklahoma, Texas, Novo México, Arizona para terminar em Santa Mónica, num ícone para os viajantes selvagens e escancaram as portas da Beat-Generation, grupos de artistas que levavam uma vida nómada ou fundavam comunidades mais tarde apelidadas de hippies. Com On the Road (PelaEstrada Fora), Jack Kerouac ganhou galões de autor reputado, algo que se agravou com Os Subterrâneos, a história da sua paixão por uma prostituta negra, Esperanza, escrito em apenas três dias. Claro que, nessa fase, não se interessava grandemente por futebol, americano ou não. E, assim sendo, não deixou de fascinar os seus admiradores com a publicação de Vanity of Dulouz, tido como um dos melhores livros jamais escritos sobre desporto e futebol americano em particular. Rapidamente a doutrina dividiu-se. Os fãs de Donald Richard, que assinava Don DeLillo, e era uma quinzena de anos mais novo do que Kerouac, bateram com os pés no chão: que não, de forma alguma, o melhor livro de sempre sobre desporto em geral e futebol americano em particular foi End Zone (que li em inglês mas também desconheço se tem versão portuguesa), e nem havia mais discussão sobre a matéria. Claro que houve. Discussão sobre os livros e sobre as personagens que os habitaram, a começar pelo libelo autobiográfico de Jack, que não se escusou a vingar-se valentemente de Little, e a acabar em Gary Harkness, o rapaz que DeLillo conduziu por obra da sua prosa a criar uma amizade fraterna com Taft Robinson, na sua narrativa o primeiro negro a ser autorizado a jogador numa equipa universitária norte-americana. As décadas e tantos livros publicados por tanta gente sobre o tema diluíram a discussão até ela não passar de um pequeno rastro de saliva que lá ia, de quando em vez, de boca em boca. Mas Jack saiu por cima. É que Robert nunca jogou futebol americano e, dessa forma, Kerouac passou à eternidade como o melhor jogador de todos os tempos que também foi escritor. DeLillo ainda anda por aí, com 87 anos. Mas cheira-me que se está nas tintas para essa parvoeira.

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Kerouac vs. DeLillo – O jogo da literatura da bola oval

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13.03.2024

Os amigos tratavam-no por Jack mas Jack nasceu de uma parceria bem mais sofisticada de nomes: o pai era Léo-Alcide Kéroack e a mãe Gabrielle-Ange Lévesque. Para ajudar, a família estabelecera residência no Canadá, no Quebeque, em St-Hubert-de-Rivière-du-Loup. Os Kéroack, que depois Jack transformou em Kerouac eram gente remediada. Léo-Alcide trabalhava numa impressora e ajudava o pastor da comunidade jesuíta da terriola. Gerard, o irmão mais novo de Jack, morreu com apenas nove anos, algo que baralhou, e muito, a cabeça do futuro escritor que, nesse tempo, se dedicava sobretudo à prática de futebol americano de forma a conseguir, como é comum nos Estados Unidos, para onde se haviam mudado entretanto, uma bolsa de mérito desportivo para entrar na universidade. Isto passou-se, portanto, em Lowell, no Massachussets, e o rapaz decidido e teimoso acabou por ser aceite na Universidade de Columbia.

Há um livro de Kerouac (Vanity of Dulouz) que confesso nunca ter lido – parece que nem sequer há versão portuguesa – em que este decide explicar, finalmente (foi um dos últimos e já editado postumamente), porque é que deixou de jogar futebol.........

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