Eugene sempre foi, desde o dia em que nasceu, em Bellville, um trinca-espinhas muito razoável. Durante a infância e a adolescência, se alguém tivesse a ideia peregrina de lhe adivinhar um grande futuro como boxeur corria o risco de ser insultado de cretino para cima. Na verdade, a malta olhava para Eugene e só de o pensar num ringue era de desatar às gargalhadas como no filme Charlot the Champion. Mas a natureza dos homens não cessa de nos surpreender. E antes de Charlie Chaplin andar de luvas nas mãos de um lado para o outro a fugir de um matulão façanhudo, chegando ao cúmulo de lhe passar por debaixo das pernas (1915), já Eugene Criqui fora campeão de França em pesos-leves (1912). Impressionante a forma como aprendera a socar adversários de forma definitiva, derrubando-os como pinos de um jogo de bowling. E tão impressionante como isso, a forma como aguentava como se nada fosse murros nos queixos e nos sobrolhos. Ah! Criqui podia ser um daqueles finguelinhas típicos dos bairros populares de Lisboa, com as calças a caírem-lhe pelas pernas e sempre de beata ao canto da boca mas, como muito poucos destes, não era nenhum fanfarrão. Pelo contrário. Era um fulano calado que não gostava de se meter na vida alheia e detestava que se metessem na sua.

Depois do título francês, o título mundial parecia perfeitamente ao alcance de Eugene, a despeito de ter uma peitaça tão enfiada para dentro que se diria tísico. Mas, helás!, veio a I Grande Guerra para deitar-lhe os planos por terra. Os dele e os de muitos milhões de jovens como ele.

«Je pense que, ce qui domine dans la carrière de Criqui, c’est son héroïsme patriotique. C’est vraiment, me semble-t-il, sa carte de visite principale. Sa présence marque la présence du courage des soldats français pendant la Première Guerre mondiale», escreveu André Rauch, historiador e escritor francês. Incorporado no exército, Eugene foi dar com os costados a Verdun. Certa noite, no seu posto de vigia, caiu na asneira de acender um cigarro. A chama do fósforo fez dele um alvo fácil. A bala do inimigo alemão entrou-lhe pelo maxilar inferior e fez mais estragos do que todos os socos que tinha levado ao longo da sua carreira. Face descarnada, vários ossos partidos: a queixada de Eugene Criqui era um destroço. Valeu-lhe um milagre da medicina militar. A urgência obrigou-o a ser operado de imediato, numa tenda de campanha, sob uma luz baça e amarelada por um médico que, felizmente para ele, sabia do seu ofício e recorreu a fios de arame, dois pedaços de ferro e um tendão de cabra para lhe recuperar o facies. Se nunca fora grande falador, durante meses perdeu a faculdade da fala. Depois, a pouco e pouco, recuperou-a por inteiro. Mas as marcas ficaram lá: a gueule cassée era indisfarçável e as cicatrizes incomodativas para quem o olhava face a face.

Se até aí Eugene Criqui fora um tipo tranquilo, depois de ser libertado do serviço militar tornou-se um bicho poderoso e sanguinário. Os seus combates atraíam multidões mas duravam poucos minutos, tal a forma como abatia os adversários por KO. Todos os grandes boxeurs do seu tempo e do seu peso tombaram-lhe aos pés completamente grogues: Jimmy Doyle, Kid Sullivan, Auguste Grassi, e sobretudo o fantástico Charles Ledoux, num espetáculo que ficou para a história da modalidade e testemunhado por largos milhares de espetadores em Vel’ d’Hiv no dia 4 de fevereiro de 1922. Em seguida tornou-se campeão da Europa à custa do belga Arthur Wins e depois campeão do mundo batendo inapelavelmente, com mais um KO, o americano Johnny Kilbane no Polo Grounds de Nova Iorque a 2 de junho de 1923, fazendo-o perder os sentidos com um formidável gancho de direita no decorrer do sexto round. Era apenas o segundo francês a conseguir ser campeão mundial de boxe após Georges Carpentier, o Homem-Orquídea. Nessa altura já ganhara a alcunha, justa convenhamos, de Queixada de Ferro. Mas foi encostado à parede pelos produtores do combate contra Kilbane. Ao assinar o contrato que lhe valeu o título supremo comprometeu-se também a pô-lo em jogo quatro dias mais tarde perante o americano Johnny Dundee, The Scotch Wop, na verdade um natural da Sicília de nome Curreri, nascido em Sciacca, na comuna de Agrigento e que ganhara a alcunha por ter sido treinado muitos anos por um tal de Scotty Montieth, escocês de Dundee, como está bem de ver. Johnny evitou ao máximo socar Criqui nas zonas dos maxilares que sabia reforçadas a ferro e arames. Atacou-o pelas alturas, por assim dizer, desfazendo-lhe os supercílios a pouco e pouco e fazendo com que o sangue lhe escorresse abundantemente pelo nariz. O campeão deixou de ver. Despediu-se dos ringues numa noite tão enevoada como a de Verdun.

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Fios de arame e um tendão de carneiro salvaram a vida do Queixada de Ferro

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05.01.2024

Eugene sempre foi, desde o dia em que nasceu, em Bellville, um trinca-espinhas muito razoável. Durante a infância e a adolescência, se alguém tivesse a ideia peregrina de lhe adivinhar um grande futuro como boxeur corria o risco de ser insultado de cretino para cima. Na verdade, a malta olhava para Eugene e só de o pensar num ringue era de desatar às gargalhadas como no filme Charlot the Champion. Mas a natureza dos homens não cessa de nos surpreender. E antes de Charlie Chaplin andar de luvas nas mãos de um lado para o outro a fugir de um matulão façanhudo, chegando ao cúmulo de lhe passar por debaixo das pernas (1915), já Eugene Criqui fora campeão de França em pesos-leves (1912). Impressionante a forma como aprendera a socar adversários de forma definitiva, derrubando-os como pinos de um jogo de bowling. E tão impressionante como isso, a forma como aguentava como se nada fosse murros nos queixos e nos sobrolhos. Ah! Criqui podia ser um daqueles finguelinhas típicos dos bairros populares de Lisboa, com as calças a caírem-lhe pelas pernas e sempre de beata ao canto da boca mas, como muito poucos destes, não era nenhum fanfarrão. Pelo contrário. Era um fulano........

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