De repente, Jess Willard deu por si na muito incómoda posição de andar de gatas pelo ringue à procura dos seis ou sete dentes que lhe haviam saltado da boca quando um muito mal-encarado Jack Dempsey lhe desferiu tamanho murro nos queixos que lhe partiu os maxilares em treze sítios diferentes. Ah! E não pensem que Jess era algum infeliz daqueles de levarem nas trombas de toda a gente desde que entram para o Jardim Escola. Bem pelo contrário, com mais de um metro e noventa e oito de altura, ganhara com naturalidade a alcunha de ‘The Big White Hope’. O problema de Willard é que, praticamente desde que nasceu, em Pottawatomie, no Kansas, a 29 de dezembro de 1881, sempre foi um fanfarrão. Tinha uma arma bem mais potente do que os seus dois punhos: a garganta. Só que geralmente jogava contra ele. A história de ‘A Grande Esperança Branca’ é fácil de contar: num tempo em que um negro de nome Jack Johnson arrebatara o título mundial, todos os racistas dos Estados Unidos juntaram-se no desejo coletivo de ver um branquela dar uma lição àquele colored atrevido. Jess parecia ser o mamífero indicado para tal embora só se tenha dedicado verdadeiramente ao boxe quase aos 30 anos, sempre excessivamente ocupado a fazer de cowboy, roçando os jeans da Levi’s na sela do cavalo.

OKansas só passou a ser um Estado verdadeiramente famoso a partir do momento em que L. Frank Baum escreveu O Feiticeiro de Oz e pôs Dorothy Gale a resmungar para o cachorro com um sotaque bastante particular: «Toto, I’ve a feeling we’re not in Kansas anymore». Mas isso foi, muito depois de Jess Willard ter andado às apalpadelas pelo chão à procura dos incisivos e dos caninos que Dempsey lhe tinha arrancado sem dar direito a anestesia. Vendo bem, de cócoras, com o maxilar inferior dependurado a balouçar, Jess também deve ter pensado – «I’ve a feeling that I’m not in Kansas anymore» – ao mesmo tempo que Jack se estava positivamente nas tintas já que nunca foi bom de assoar e quando lhe dava para a brutalidade era melhor sair-lhe da frente ou os combates transformavam-se naquilo que ainda hoje é conhecido por ‘OMassacre de Toledo’, já que foi precisamente em Toledo, Ohio, que o bazófio levou para assar.

William Harrison Dempsey era natural de Manassa, no Colorado, mas passou a maior parte da juventude em Logan County, West Verginia. Cáspite! Como de costume, no meio da prosa há sempre uma musiquinha que me apanha o ouvido em cheio e fico com ela a moer-me o cérebro pela madrugada. Desta vez calhou-me o John Denver: «Almost heaven, West Virginia/Blue Ridge Mountains, Shenandoah River/Life is old there, older than the trees/Younger than the mountains, growin’ like a breeze/Country roads, take me home/To the place I belong/West Virginia, mountain mama/Take me home, country roads». Pobre John: morreu num desastre de aviação, ia ele próprio aos comandos do aparelho, e agora tem as suas cinzas espalhadas pela Rocky Mountains, no Colorado. Deve estar por lá um frio os diachos.

Ao contrário de Jess, Jack começou desde miúdo a distribuir pancadaria gratuitamente a qualquer miúdo da sua idade que lhe passasse por perto. Da sua idade e mais velhos. De tal ordem que não tardou muito a ser explorado por alguns daqueles miseráveis que gostavam de apostar em tudo e mais um par de botas. Estava um calor de ananases em Toledo, nesse dia 4 de julho de 1919 e Dempsey estava impossível de aturar. Queria acabar com o assunto depressa e ir para o quarto de hotel, abrir a janela e adormecer em cima do colchão pejado de percevejos. Vai daí e começou a esmurrar Jess com toda a gana mal ouviu o tilintar da campainha. Durante o primeiro round deixou-o por terra sete vezes e ia ficando cada vez mais irritado à medida que o calmeirão à sua frente se levantava sem medo de levar mais umas punhadas. Finalmente, seis minutos e um segundo após o combate ter tido início, Jack puxou a culatra atrás e desferiu aquele tremendo murro que fez Willard dar duas voltas sobre si próprio antes de cair como um fuso de cara em cheio no soalho.

Apesar de paparrotão, Jess teve uma certa elegância na derrota, elogiando o seu adversário com a máxima prodigalidade que lhe foi possível. E percebeu que tinha chegado a hora de poupar as fuças a maus tratos como o que acabara de sofrer. Percebeu que já não havia nada para si no fim da estrada dos tijolos amarelos e regressou ao Kansas para tratar de cavalos selvagens muito mais fáceis de lidar do que as variações de humor de Dempsey. Pelo menos nunca nenhum dos equídeos lhe escoicinhou as mandíbulas com tanta força. O resto de dentes que teve de tirar já foram num dentista.

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E Jess ficou com a impressão de que já não se encontrava no Kansas

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31.01.2024

De repente, Jess Willard deu por si na muito incómoda posição de andar de gatas pelo ringue à procura dos seis ou sete dentes que lhe haviam saltado da boca quando um muito mal-encarado Jack Dempsey lhe desferiu tamanho murro nos queixos que lhe partiu os maxilares em treze sítios diferentes. Ah! E não pensem que Jess era algum infeliz daqueles de levarem nas trombas de toda a gente desde que entram para o Jardim Escola. Bem pelo contrário, com mais de um metro e noventa e oito de altura, ganhara com naturalidade a alcunha de ‘The Big White Hope’. O problema de Willard é que, praticamente desde que nasceu, em Pottawatomie, no Kansas, a 29 de dezembro de 1881, sempre foi um fanfarrão. Tinha uma arma bem mais potente do que os seus dois punhos: a garganta. Só que geralmente jogava contra ele. A história de ‘A Grande Esperança Branca’ é fácil de contar: num tempo em que um negro de nome Jack Johnson arrebatara o título mundial, todos os racistas dos Estados Unidos juntaram-se no desejo coletivo de ver um branquela dar uma lição àquele colored atrevido. Jess parecia ser o mamífero indicado para tal embora só se tenha dedicado........

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