Muitas vezes ouço Gardel, o misterioso Charles Romuald Gardés, que não se sabe se nasceu em Toulouse se em Tacuarembó, se era francês se era uruguaio, mas que dizia sempre com teimosia: «Nasci em Buenos Aires aos dois anos e meio de idade». De certeza, certeza absoluta, sabe-se que morreu num desastre de avião quando o aparelho em que viajava se despenhou ao levantar do aeroporto de Medellín, na Colômbia. «Mi Buenos Aires querido/Cuándo yo te vuelva a ver/No habrá más penas ni olvido…». Fico escutando na gravação o som ronronado das estrias do vinil. Bate certo. Bate completamente certo com a sua voz arrastada de conquistador de corações amolecidos: «La ventanita de mi calle de Arrabal/Donde sonríe una muchachita en flor/Quiero de nuevo yo volver a contemplar/Aquellos ojos que acarician al mirar…». Ah! Como suspiravam as «muchachitas en flor».
Em 1950, Gardel já estava morto há 15 anos. A IIGrande Guerra devastara a Europa, o futebol reclamava o regresso do Campeonato do Mundo e o Brasil foi designado para recebê-lo porque não havia destroços nem tumbas por toda a parte e foi possível erguer um monumento ao jogo inventado pelos ingleses chamado Estádio Mário Filho, o Maracanã, com lugar para duzentas mil almas. Na Argentina, o Luna Park já existia mesmo antes da morte de Carlos Gardel. Fora aberto ao público em 1931 e servia como casa de espetáculos de todo o género, desde concertos a combates de boxe. Mas, nesse mesmo ano de 1950, rearrumou-se para receber o primeiro Campeonato do Mundo de Basquetebol. Os argentinos resignavam-se. Se o futebol ficava no Brasil, eles teriam o basquete. E algo de absolutamente oposto sucedeu nos dois países vizinhos: favorito, o Brasil perdeu para o Uruguai (1-2); inesperadamente, a Argentina bateu os Estados Unidos na final (64-50). A Avenida Corrientes tornou-se um rio de gente em festa.
Um ano depois da espampanante vitória argentina, o realizador e pioneiro do cinema argentino Leopoldo Torres Ríos tinha pronto um filme que explorava o entusiasmo que os seus compatriotas dispensavam ao jogo da bola ao cesto. Chamava-se En Cuerpo y Alma. Antonio Núñez e Pedro Guzmán, dois fedelhos de um bairro pobre de Buenos Aires combinam uma luta por causa de uma «muchachita en flor» de nome Margarita. Quando chegam ao ‘potrero’ no qual prometeram esmurrar-se até que um levasse a melhor deparam com um grupo de outros garotos a jogar basquetebol. Afinal, a cena de pancadaria que devia ser mano a mano transforma-se num ‘follón’ com cada um a querer molhar a sopa no que estivesse mais à mão de semear. Por entre a gritaria surge um polícia e, num espaço de segundos, os ‘pibes’ separam-se e fingem uma amena conversa sobre o tema da vitória da Argentina noCampeonato do Mundo. Os anos passam, os indezes crescem, fundem um clube, o Club Sportivo Buzón, continuam apaixonados por Margarita mas, moita!, não lhe dizem nada para alimentar o resto da trama que é de encher alguidares com quartilhos de lágrimas. «Y oigo la queja de un bandoneón/Dentro mi pecho pide rienda el corazón…».

Duas das personagens de En Cuerpo y Alma representam-se a si próprias: uma é Omar Ubaldo Monza, a outra é Oscar Alberto Furlong. Ambos foram fundamentais na seleção da Argentina de 1950 e surgem em imagens fazendo aquilo que melhor sabiam fazer, driblando e encestando como loucos. O povo tinham por eles uma paixão maior do que a de Pedro e Antonio por Margarita e, se lhe dessem essa oportunidade, caminharam pelas ruas com eles aos ombros. Furlong era mais velho, nasceu em 1927; Monza veio ao mundo em 1929. Furlong viveu mais tempo, morreu em 2018; Monza desapareceu da lista dos vivos em 2017. Houve, no entanto, uma diferença muito grande entre a existência de Oscar Alberto e Omar Ubaldo. O primeiro era adorado pela populaça e benquisto pelos autores da Revolución Libertadora que mergulhou a Argentina numa ditadura cívico-militar, tornou-se um jogador de ténis de categoria, foi presidente da federação e continuou a passear-se alegremente pelas ‘calles’ e ‘boulevards’ da sua Buenos Aires querida. O segundo não suportava a perseguição movida contra os seus compatriotas, sujeitou-se à prisão e à tortura. Foi proibido de toda e qualquer prática de desporto. Suportou a sanção durante 11 anos. Depois, liberto, disse: «Durante esa noche de las antorchas todo el mundo salió por Corrientes hasta Callao, había más gente afuera que adentro del Luna Park. A pesar de que pasaron tantos años uno no se olvida ja». E as «muchachitas en flor» voltaram a sorrir…

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E as ‘muchachitas em flor’voltaram a sorrir em Buenos Aires

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18.01.2024

Muitas vezes ouço Gardel, o misterioso Charles Romuald Gardés, que não se sabe se nasceu em Toulouse se em Tacuarembó, se era francês se era uruguaio, mas que dizia sempre com teimosia: «Nasci em Buenos Aires aos dois anos e meio de idade». De certeza, certeza absoluta, sabe-se que morreu num desastre de avião quando o aparelho em que viajava se despenhou ao levantar do aeroporto de Medellín, na Colômbia. «Mi Buenos Aires querido/Cuándo yo te vuelva a ver/No habrá más penas ni olvido…». Fico escutando na gravação o som ronronado das estrias do vinil. Bate certo. Bate completamente certo com a sua voz arrastada de conquistador de corações amolecidos: «La ventanita de mi calle de Arrabal/Donde sonríe una muchachita en flor/Quiero de nuevo yo volver a contemplar/Aquellos ojos que acarician al mirar…». Ah! Como suspiravam as «muchachitas en flor».
Em 1950, Gardel já estava morto há 15 anos. A IIGrande Guerra devastara a Europa, o futebol reclamava o regresso do Campeonato do Mundo e o Brasil foi designado para recebê-lo porque não havia destroços nem tumbas por toda a parte e foi possível erguer um monumento........

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