Joaquim Pedro Quintela acumulou mais títulos do que uma personagem de Camilo Castelo Branco: 1.º conde do Farrobo e 2.º barão de Quintella, 2.º senhor de Préstimo, 2.º alcaide-mor de Sortelha, fidalgo cavaleiro da Casa Real e Par do Reino, comendador da Ordem de Santiago da Espada e da Ordem de Cristo, grã-cruz da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa. Ora toma! Uma verdadeira coleção de distinções que vão ao encontro da distinta (qual distinta?, distintíssima) figura que foi. Entro na página inicial do Capítulo I de Perfídia e leio: «Joaquim Pedro Quintella do Farrobo (1801-1869) nasceu em berço esplêndido. Filho do 1º barão de Quintella, senhor de fortuna assente no contrato de tabaco, onde também radicavam as heranças de pai e tios maternos e de outros negócios “coloniais”, como o Contrato das Baleias. Sua mãe, D. Maria Joaquina Xavier de Saldanha (1774-1805), de beleza serena, tal como a retratou Domenico Pellegrini, faleceu ainda ele não tinha completado quatro anos. Foi educado com todo o esmero, como primeiro filho varão. A irmã Maria Gertrudes, nascida quatro anos antes, foi condessa da Cunha por casamento com o conde em 1814». Poderia partir por aí fora, caboucando páginas e páginas de uma obra impressionante escrita por António Alves-Caetano sobre uma personagem que esteve muitas vezes encafuada no poço do olvido da memória coletiva dos portugueses. António nasceu em Lisboa em 1931 e licenciou-se em Economia seguindo, depois, um percurso profissional de investigação histórica, algo de que este volume é um excelente exemplo. O seu currículo é tão extenso que precisaria de mais duas ou três páginas para falar sobre ele. De qualquer forma, há por aí muitos dados sobre o autor que podem ser consultados pelo leitor, neste caso o leitor que passa os olhos por esta página e pode sentir o impulso de saber mais alguma coisa sobre ele. Não perca a oportunidade. Fixemo-nos no conde do Farrobo, assunto que aqui me traz, com bastante atraso, aliás, porque foi já há bastante tempo que falei com o António Alves-Caetano sobre a matéria em causa e me mostrei interessado em publicar algo sobre o seu livro magnífico. Não se iludam: não é para ser lido como um romance porque nada tem de romanceado. É a história pura e dura, facto a facto, de alguém que, segundo o autor, sofreu na pele a realidade de uma sociedade que não o valorizou – «Farrobo foi objeto da inveja dos poderosos: os próceres dos diferentes quadrantes do arco governativo comportaram-se como um só quando se aperceberam de que do fabuloso contrato recebido como recompensa régia de D. Pedro e de D. Maria II se poderia cavar a sua ruína». E, no entanto, se algo distinguiu Joaquim Pedro Quintela dos seus contemporâneos endinheirados, foi a sua filantropia, a sua generosidade, tornando-se um mecenas de bolsos sem fundo, pronto a apoiar gente de todas as artes e promover manifestações artísticas dos mais diversos espetros. Popularmente, a sua imagem ficou marcada pelos excessos. Justa ou injustamente. E o livro publicado por Eduardo Noronha em 1922, numa edição da Romano Torres, chamado Estroinas e Estroinices, Decadência do Conde do Farrobo, serviu para emporcalhar muitas das suas atividades, ligando-as mais a uma idiossincrasia debochada do que à sua profunda dedicação à causa pública, à qual nunca negou a colaboração financeira assente na sua enorme fortuna. Estroinas e Estroinices é uma novela de humor, muitas vezes absolutamente destrutivo, pegando em muitos episódios históricos e transformando-os em pilhérias. A sua faceta de patrocinador de excessos e festins desmesurados ganhou o direito ao neologismo farrobodó. Marina Tavares Dias, talvez a mais prolífica escritora sobre Lisboa, resumiu: «Os principais cantores de ópera europeus da época atuaram no seu Teatro Thalia, anexo ao palácio, onde invariavelmente terminavam todas as festas, nas quais a família real marcava presença, em especial o rei D. Fernando e a sua filha Maria Ana. Foi com estas festas opulentas que Quintela estoirou uma fortuna que demorara dez gerações a criar». O seu Palácio das Laranjeiras era palco de festins inimitáveis, mas o conde do Farrobo foi muito mais do que um desbragado moinante. Talvez por isso, António Alves-Caetano tenha tido a necessidade de chamar Perfídia à sua obra a todos os títulos notável.

QOSHE - A vida do barão de Quintella não se resumiu a um farrobodó - Afonso De Melo
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A vida do barão de Quintella não se resumiu a um farrobodó

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14.12.2023

Joaquim Pedro Quintela acumulou mais títulos do que uma personagem de Camilo Castelo Branco: 1.º conde do Farrobo e 2.º barão de Quintella, 2.º senhor de Préstimo, 2.º alcaide-mor de Sortelha, fidalgo cavaleiro da Casa Real e Par do Reino, comendador da Ordem de Santiago da Espada e da Ordem de Cristo, grã-cruz da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa. Ora toma! Uma verdadeira coleção de distinções que vão ao encontro da distinta (qual distinta?, distintíssima) figura que foi. Entro na página inicial do Capítulo I de Perfídia e leio: «Joaquim Pedro Quintella do Farrobo (1801-1869) nasceu em berço esplêndido. Filho do 1º barão de Quintella, senhor de fortuna assente no contrato de tabaco, onde também radicavam as heranças de pai e tios maternos e de outros negócios “coloniais”, como o Contrato das Baleias. Sua mãe, D. Maria Joaquina Xavier de Saldanha (1774-1805), de beleza serena, tal como a retratou Domenico Pellegrini, faleceu ainda ele não tinha completado quatro anos. Foi educado com todo o esmero, como primeiro filho varão. A irmã Maria........

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