Zlatko Čajkovski era uma besta. Ok, ok! Não uma daquelas bestas de 124 patas que enchem as páginas das Escrituras, apenas uma besta dentro de campo, com o seu futebol de porrada-de-criar-bicho, sem respeito nenhum por qualquer parte do corpo do adversário, nem sequer pelas amígdalas ou pelo esternocleidomastóideo, como diria o Vasquinho da Anatomia. No Mundial de 1950, Čajkovski, que nasceu em Zagreb no que era, então, o Reino dos Sérvios Croatas e Eslovenos, vestiu a camisola do país que sucedeu a esse Estado meio confuso, a mais prosaica República Federal da Jugoslávia, e no Partizan de Belgrado onde criou a fama e recolheu o proveito de ser um centro-campista duro como aço e muito pouco escrupuloso. E, no entanto, vejam bem como as coisas são, houve alguém que lhe colou a carinhosa alcunha de Čik. Todos sabemos que essa fase final do Campeonato do Mundo ficou para a história graças à derrota dos brasileiros num Maracanã a rebentar pelas costuras, com 200 mil fanáticos, perante o Uruguai, mas poucos se lembram que, até chegar à final, que nem sequer foi uma verdadeira final porque se tratou apenas do jogo decisivo entre os dois primeiros de um grupo de quatro finalistas, a ‘canarinha’ (que também não era canarinha porque o Brasil jogava de camisola branca e calção azul e só adotou o amarelo depois de os seus dirigentes se convenceram de que o branco dava azar) viu-se e desejou-se na fase inicial da prova e apanhou um cagaço dos valentes quando, face à Suíça, com o resultado em 2-2, viu um tal de Hans Peter Friedlande chutar na trave de Barbosa, um desgraçado que ficou marcado para toda a vida por ter sofrido o golo de Ghiggia a dez minutos do derradeiro dos derradeiros apitos.

Estou a ver que esta história está a ficar um tudo nada confusa e é melhor ir direito ao assunto e o assunto é Zlatko Čajkovski. E Mitic também, já agora. Ainda estava a trave do pobre Barbosa a abanar e já o Brasil entrava o Brasil em campo para defrontar a Jugoslávia que, por via das dúvidas, fizera o seu servicinho sem espinhas despachando a Suíça por 3-0 e o México por 4-1. Talvez os brasileiros tenham encomendado uma macumba porque, com as cabinas do Maracanã ainda em obras – aquilo foi tudo um bocado feito do pé para a mão, há que convir -, um dos mais influentes jogadores jugoslavos, Rajko Mitic, deu positivamente com as fuças numa trave de cimento e teve de ser suturado com doze pontos no crânio, o que fez com que o Brasil jogasse os primeiros vinte minutos com um a mais já que o treinador adversário teimou que não podia dispensar Mitic nem que este caísse em estado de coma. Foram vinte minutos proveitosos e Ademir marcou um golo bem cedo. Então Čajkovski começou verdadeiramente a demonstrar o seu mau feitio e a arrancar pela raiz todos os que tiveram o azar de lhe passar pelas redondezas, havendo mesmo quem asseverasse que chegou a dar caneladas nos próprios companheiros de equipa.

Com onze contra onze, o jogo complicou-se para o Brasil. O ‘povão’, nas bancadas, exigia a expulsão de Čik, um matulão em largura já que não passava do metro e sessenta e três de altura. Os tímpanos o árbitro galês Sandy Griffiths já deviam estar definitivamente estragados quando um mamífero mais exaltado resolveu tomar uma atitude, por assim dizer, divina, e lançou com toda a força que tinha uma laranja lá do alto das bancadas. O citrino sobrevoou umas dezenas largas de metros e esborrachou-se com estrondo na testa de Zlatko Čajkovski. Pode dizer-se com propriedade que o jogo acabou aí. Zlatko abanou mas não caiu. Só que continuou a abanar durante o resto do tempo que faltava até final. Parecia um daqueles bonecos sempre-em-pé, tropeçando nos próprios calcanhares, e cada vez mais furioso avançava como um touro cego de feridas ninguém percebia ao certo para onde e contra quem. Os assobios do Maracanã deram lugar a gargalhadas bastante dolorosas para o furibundo jugoslavo. E a cada risada, a sua raiva aumentava exponencialmente. Podia não distinguir companheiros de adversários mas continuava a foçar numa sede sanguinária. Uma mancha negra e ao mesmo tempo alaranjada crescia a olhos vistos em redor do seu olho esquerdo mas Čik não parava um segundo, lutando contra si mesmo e contra a sua incapacidade. Ninguém podia acusá-lo de falta de coragem, isso é certo. Aos 69 minutos, Zizinho fez o 2-0 definitivo. Mas uma voz erguia-se por entre o grupo de jugoslavos. Não a de Čajkovski, que estava mudo de ódio incontido, mas a de Mitic que berrava numa gana de empate. Ninguém lhe explicara que, quando entrou em campo, a Jugoslávia já perdia. Para ele um golo devolvia a sua equipa ao jogo. O único em todo o estádio que achava que estava apenas 1-0. E 12 pontos na cabeça rachada.

QOSHE - A terrível vingança da laranja de Deus - Afonso De Melo
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A terrível vingança da laranja de Deus

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15.02.2024

Zlatko Čajkovski era uma besta. Ok, ok! Não uma daquelas bestas de 124 patas que enchem as páginas das Escrituras, apenas uma besta dentro de campo, com o seu futebol de porrada-de-criar-bicho, sem respeito nenhum por qualquer parte do corpo do adversário, nem sequer pelas amígdalas ou pelo esternocleidomastóideo, como diria o Vasquinho da Anatomia. No Mundial de 1950, Čajkovski, que nasceu em Zagreb no que era, então, o Reino dos Sérvios Croatas e Eslovenos, vestiu a camisola do país que sucedeu a esse Estado meio confuso, a mais prosaica República Federal da Jugoslávia, e no Partizan de Belgrado onde criou a fama e recolheu o proveito de ser um centro-campista duro como aço e muito pouco escrupuloso. E, no entanto, vejam bem como as coisas são, houve alguém que lhe colou a carinhosa alcunha de Čik. Todos sabemos que essa fase final do Campeonato do Mundo ficou para a história graças à derrota dos brasileiros num Maracanã a rebentar pelas costuras, com 200 mil fanáticos, perante o Uruguai, mas poucos se lembram que, até chegar à final, que nem sequer foi uma verdadeira final porque se tratou apenas do jogo decisivo entre os dois primeiros de um grupo de quatro........

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