Jacqueline Roque foi a segunda mulher de Picasso, viveu com ele durante doze anos, e dizem que se suicidou por não ter aguentado o desaparecimento de Pablo da sua vida. Embora ele tenha saído e entrado na sua vida muitas vezes, tal como entrou e saiu da vida de tantas outras. Num momento de indisfarçável humor, comentou para um jornalista seu amigo: «La frase favorita de el es – ‘Yo, Picasso!’». Pablo saltava de mulher em mulher como um beija-flor de eritrina-candelabro a maçaranduba, de murungu a muxoxo, de saranduba a suinã. Por isso, como se percebe, para se atracar a Jaqueline, largou Françoise Gaime Gilot, também pintora, e à qual costumava perguntar de cada vez que saía de sua casa, em Paris: «Vou ali ao Louvre, queres que te traga alguma coisa?». Não estranhem: entrava-se no museu como num moinho e a quantidade de peças de arte que desapareciam eram incontáveis.

Pelo caminho, com o tempo, Picasso fartou-se de Paris e mudou-se para a Côte d’Azur onde acabaria por instalar-se em Mougins, uma comuna francesa da região administrativa da Alpes Marítimos, depois de abandonar a famosa casa Le Californie, na qual Winston Churchill se instalara em muitos dos dos seus momentos livres para praticar o seu entretenimento favorito: pintar. O motivo terá sido a construção de um edifício que lhe tapava a vista do mar.

Se de um pintor (Churchill) ao outro (Picasso) a diferença teve bastante de abissal, há que dizer que na questão de gostos as divergências também se cavaram. Winston gostava de olhar para o mar e replicar na tela as nuances coloridas a que ia assistindo. Pablo estava completamente obcecado por tudo aquilo que ainda seria capaz e fazer durante a velhice, desde andar de cama em cama das suas concubinas, ao que a firmeza da mão ainda poderia obter do pincel sobre a tela. E descobriu que, por exemplo, sentia prazer em pintar sobre um tema que ainda não tinha experimentado: o futebol. E, assim sendo, em 1961, rabisca bem ao seu estilo o confronto entre duas equipas com uma bola amarela pelo meio. Foi apenas uma experiência. E não tardou a utilizar essa experiência para avançar para uma obra bem mais marcante, Footballeur, uma escultura que representa um futebolista canhoto a pontapear uma bola.

O dr. Ramón Balius, que manteve uma relação de camaradagem com Pablo Picasso desde que o malaguenho se mudou para a Côte d’Azur, surgiu uns vinte anos mais tarde com a afirmação que criou algum barulho de que Picasso se passara a entusiasmar pelo futebol e que fazia questão que o acompanhasse para ver jogos do Mónaco, um clube que ganhara uma nova vida e se começara a destacar em França graças aos títulos nacionais conquistados em 1960-61 e 1962-63 e às Taças de França ganhas em 1959-60 e 1962-63.

Não é mistério para ninguém que as vitórias funcionam com uma doença que só a derrota cura, como escreveu certo dia Mário Filho, o homem que deu nome ao Maracanã. Estivesse Pablo fascinado ou não fascinado pelo jogo dos ingleses, o facto é que uma obra sua, fosse sobre futebol ou sobre petanca, valia dinheiro e do bom. The Manchester Football Museum exibiu durante um grande período de tempo uma das 50 cópias que existiam de Footballeur espalhadas pelo planeta redondo e apenas ligeiramente achatado os polos. A escultura original tinha sido produzia na fábrica de cerâmica Madoura, situada na vila de Vallauris, e Pablo foi bastante exigente (e mal educado) com os funcionários, sobretudo com uma tal de Jacqueline Roque, que fazia por lá uma perninha sempre que dispunha de tempo e vontade para isso. O Fooballeur de Manchester ainda existe, foi comprado por um fulano que não quis expor o nome à sociedade, por cerca de 40 mil euros, e parece ser, a meias com mais uma ou duas pinturas, a única prova de que Pablo Picasso gostou verdadeiramente de futebol, ele que não perdia uma tourada, por exemplo, sempre que a possibilidade se predispunha. Para compensar mademoiselle Roque não teve cabeça para suportar a sua morte e tomou a decisão de ir ter com ele, fosse onde fosse, viajando para o além à custa de barbitúricos. Talvez gostasse da frase batia: «Yo, Picasso!».

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‘Yo, Picasso!’. E o futebol também!

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07.03.2024

Jacqueline Roque foi a segunda mulher de Picasso, viveu com ele durante doze anos, e dizem que se suicidou por não ter aguentado o desaparecimento de Pablo da sua vida. Embora ele tenha saído e entrado na sua vida muitas vezes, tal como entrou e saiu da vida de tantas outras. Num momento de indisfarçável humor, comentou para um jornalista seu amigo: «La frase favorita de el es – ‘Yo, Picasso!’». Pablo saltava de mulher em mulher como um beija-flor de eritrina-candelabro a maçaranduba, de murungu a muxoxo, de saranduba a suinã. Por isso, como se percebe, para se atracar a Jaqueline, largou Françoise Gaime Gilot, também pintora, e à qual costumava perguntar de cada vez que saía de sua casa, em Paris: «Vou ali ao Louvre, queres que te traga alguma coisa?». Não estranhem: entrava-se no museu como num moinho e a quantidade de peças de arte que desapareciam eram incontáveis.

Pelo caminho, com o tempo, Picasso fartou-se de Paris e mudou-se para a Côte d’Azur onde acabaria por instalar-se em Mougins, uma comuna........

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