É insultante e ultrajantemente insultuoso dizer e escrever, como muitos por aí, que Paris não é uma cidade de futebol. Só gastrópodes de respiração cutânea podem afirmá-lo sem pingo de vergonha. Estudassem. Fossem ao ano de 1900, por exemplo, quando a França foi vice-campeã Olímpica – o que equivalia a ser vice-campeã do mundo – com os seus medalhados Alfred Bloch, Eugène Fraysse, Virgile Gaillard, Georges Garnier, René Grandjean e companheiros. Uma grande seleção precisa de ser, por vezes, aspergida com o regador da rivalidade. Vários clubes parisienses trataram de fazer inchar como um repolho do Entroncamento a chamada ‘passion partisane’, ou seja, o inglesíssimo‘football association’. O mais nobre dos três foi, muito provavelmente, o Racing Club de France, fundado em 1882, e em cujas instalações, Croix-Catelan Stadium, em Colombes, se desenrolou o tal Torneio Olímpico de Futebol que serviu de início a esta crónica. Outros disputavam essa convicção – Paris foi uma cidade de futebol, mas os parisienses não passaram a arrastar-se de humildade nos ‘trottoirs’ por causa disso, homessa! Nessa altura havia clubes em barda na Cidade Luz: Standard Athletic Club; Club Français; US Suisse Paris; Olympique de Paris; CA Paris-Charenton; Gallia Club Paris; US Parisienne; Red Star F.C.; «and the last but not definitively the least», The White Rovers!

Ok, de acordo, não batam mais no ceguinho, que culpa tenho eu que uns mamíferos gémeos chamados John e Thomas Bertram Wood, nascidos em Tottenham em 1872, se tenham mudado de malas e baús para a Rue Pasquier e ali, nas horas em que faziam gazeta aos estudos, resolveram embebedar-se com os amigos no Café Français – a cerveja era, por sinal, muito pouco tépida para o seu gosto – e da ressaca consequente haja brotado um clube de futebol chamado precisamente The White Rovers? Poupem-me! Convenhamos que os manos Wood criaram um certo burburinho na capital de França que, até então, ainda não aceitara de boa catadura o jogo inventado pelos ingleses numa pura exibição de incoerência à francesa já que haviam tomado gosto pelo rugby, também ele indiscutivelmente britânico. Uma questão lá entre eles que não vou alimentar, era o que me faltava. A fundação do clube foi anunciada com uma pompa e uma circunstância de fazer chorar qualquer Elgar – no Les Sports Athlétiques, uma publicação da responsabilidade de uma entidade gigantesca como era a Union des Sociétés Françaises de Sports Athlétiques, uma reportagem anunciava-se que os The White Rovers estavam longe, mas mesmo muito longe, de serem uma agremiação redutora e que, como prova da sua vontade de se imbuir nos costumes locais, apesar de ser fundada, presidida e financiada pela comunidade inglesa de Paris, estava disposta a aceitar como sócios e atletas gente que não tivesse nascido para lá da Mancha. Numa pequena alínea, no entanto, referia que nas instalações do clube e durante o tempo em que as modalidades durassem os desportistas deviam comportar-se sob as regras dessa magnífica instituição que é o fair-play e que deviam falar uns com os outros exclusivamente em inglês. «By Jove!».

Talvez tenha sido por causa dessas picuinhices tão próprias da idiossincrasia do povo inglês, que é muito capaz de se entusiasmar ao ser surpreendido pelo facto de, durante a sua juventude, o Rei Carlos VI ter tido aulas particulares de The Art of Knitting em_Balmoral, que The White Rovers tenha limitado a sua existência até somente 1898. Na verdade, os ingleses haviam começado a abandonar Paris aos magotes. Como sempre queixavam-se da cozinha e do excesso de alho no tempero e de a quase totalidade dos franceses serem incapazes de falar inglês sem um ‘dreadful accent’. E sem ingleses, um clube cujas regras obrigavam a que se falasse inglês até nos lavabos («I must say my dear, I know that’s looks preposterous but I can’t find my way to the loo», já imaginaram?!) não podia ter grande futuro em França. Como não teve. Ainda por cima num altura em que um tipo de nome William Henry Sleator, gendarmes andavam furiosamente à caça de alguma exibindo mensagens políticas. «Bof! Vraiment des cons, ces mecs lá bas!».

afonso.melo@nascerdosol.pt

QOSHE - ‘Gentlemen, here we speak English!’ – um clube de elite até nos lavabos!  - Afonso De Melo
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‘Gentlemen, here we speak English!’ – um clube de elite até nos lavabos! 

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09.01.2024

É insultante e ultrajantemente insultuoso dizer e escrever, como muitos por aí, que Paris não é uma cidade de futebol. Só gastrópodes de respiração cutânea podem afirmá-lo sem pingo de vergonha. Estudassem. Fossem ao ano de 1900, por exemplo, quando a França foi vice-campeã Olímpica – o que equivalia a ser vice-campeã do mundo – com os seus medalhados Alfred Bloch, Eugène Fraysse, Virgile Gaillard, Georges Garnier, René Grandjean e companheiros. Uma grande seleção precisa de ser, por vezes, aspergida com o regador da rivalidade. Vários clubes parisienses trataram de fazer inchar como um repolho do Entroncamento a chamada ‘passion partisane’, ou seja, o inglesíssimo‘football association’. O mais nobre dos três foi, muito provavelmente, o Racing Club de France, fundado em 1882, e em cujas instalações, Croix-Catelan Stadium, em Colombes, se desenrolou o tal Torneio Olímpico de Futebol que serviu de início a esta crónica. Outros disputavam essa convicção – Paris foi uma cidade de futebol, mas os parisienses não passaram a arrastar-se de........

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