A Itália gosta de Manuel Alegre, a Itália publica Manuel Alegre, a Itália faz questão de estudar Manuel Alegre. Quando, neste caso, um livro que foi escrito durante os dias tristes da pandemia, foi o último a ser apresentado por lá, em Nápoles, na Livraria Mondatori, contando com a presença fundamental da grande tradutora do poeta português para italiano, a jornalista Armanda Parisi. Talvez o italiano seja a mais bela de todas as línguas._Talvez o português seja a mais poética de todas as línguas. A verdade é que entre uma realidade e outra, ou apenas entre a hipótese das duas porque, decididamente, a poesia não é pura matemática embora esteja cheia de matemática no seu ritmo e na sua métrica, Quando passou a ser um livro também ele italiano. «Grazie a questi versi, il lettore si confronta con il tempo: quello passato, ovvero con le esperienze; il tempo presente, che è un tempo chiuso; e le incertezze che ci aspettano all’orizzonte, ossia il tempo a venire. Ecco la vita di tutti noi». Podia traduzir isto tudo já que é de tradução que se fala. Mas a linguagem é tão clara e tão límpida como os olhos de Elizabeth Taylor. «Eis a vida de todos nós», diz a última frase. Então porque não mergulharmos naquele azul de veludo misturado com o tom das ametistas dos olhos agora para sempre fechados de Elizabeth Taylor. É do mundo que Manuel Alegre fala em Quando. Elizabeth Taylor foi o mundo, à sua maneira, Cleópatra das Cleópatras, tal como o são Homero, Vergílio e Dante, Camões, Shakespeare ou Bob Dylan o mais surpreendente e o menos politizado de todos os Prémios Nobel da Literatura.

Sou sempre suspeito quando falo ou quando escrevo sobre Manuel Alegre, meu mestre, meu amigo muito querido, irmão de infância de meu pai, entretanto injustamente morto, logo ele que foi o ser humano mais completo, mais sábio, mais íntegro que conheci, a dor mais funda que alguma vez me doeu. Sou sempre suspeito mas isso não me impede, nunca impediu nem nunca impedirá de saber para quem escrevo, respeitando sempre os leitores, como nos ensinava o Vítor Santos, o leitor é que nos faz viver, é para ele que trabalhamos, é por ele que temos de dar todo o nosso melhor mesmo que seja apenas um. Não é por acaso, certamente, que a Universidade de Pádua tem um cátedra com o nome de Manuel Alegre desde de 2009. «Voz revolucionária da poesia», escreveu-se em Itália a propósito da apresentação napolitana desta última obra de Alegre. Na capa, um poema. Não deixa de ser original, não deixa de ser íntimo. As capas que são feitas para nos chamarem a atenção do rio das palavras que corre por dentro do livro é extraída do seu interior e expõe-se à nossa frente sem pudores: «Un libro da scrivere/un libro da redigere ai margine/della stessa scritura. Un libro/con tutte le sillabe al contrario/e uccelli chi planano nelle immagine…». Mais uma vez não traduzo. Que sentido faria? Que justificação podia dar se falo de uma tradução voltar a retraduzi-la para o português em que nasceu? Manuel o poeta, Manuel o político, Manuel o revolucionário, Manuel o romântico. Quando tem o mesmo nome em português e em italiano. Mas é a Itália que aqui trago de mão dada com Manuel Alegre, o mais italiano de todos os poetas portugueses. Por isso o cantam. Por isso vão em busca das suas palavras e levam-nas para a sua própria língua. A língua mãe da nossa língua. «Un libro comme brezza passagera/un libro non libro ma soltanto/un sussurro tra il fogli. Un libro che si perde/in ogni cellula del corpo/e pulso nel ritmo del’essere e del non essere». Ah! Manel. Esse eterno regresso ao ser e não ser. Afinal, quem somo nós além de nós? Que somos nós para nós mesmos e para os outros. Um sussurro entre folhas? Um sussurro entre folhas de um livro? Ou talvez mesmo o próprio livro. «Nasce già morto e sempre da sé stesso/resuscita. Un libro da scribere/e per il quale non c’é scrittura». Nasce já morto o menino de sua mãe. De nada serve, lá de longe, a prece. Há um livro para escrever em cada livro de Manuel Alegre, como se, no fundo, nascessem uns dos outros. Às vezes mudam de língua. O ritmo das seivas permanece. É com ele que Alegre escreve até o que não há mais para escrever com essa alma de homem de País Azul.

QOSHE - “Ecco la vita di tutti noi” - Afonso De Melo
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“Ecco la vita di tutti noi”

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03.11.2023

A Itália gosta de Manuel Alegre, a Itália publica Manuel Alegre, a Itália faz questão de estudar Manuel Alegre. Quando, neste caso, um livro que foi escrito durante os dias tristes da pandemia, foi o último a ser apresentado por lá, em Nápoles, na Livraria Mondatori, contando com a presença fundamental da grande tradutora do poeta português para italiano, a jornalista Armanda Parisi. Talvez o italiano seja a mais bela de todas as línguas._Talvez o português seja a mais poética de todas as línguas. A verdade é que entre uma realidade e outra, ou apenas entre a hipótese das duas porque, decididamente, a poesia não é pura matemática embora esteja cheia de matemática no seu ritmo e na sua métrica, Quando passou a ser um livro também ele italiano. «Grazie a questi versi, il lettore si confronta con il tempo: quello passato, ovvero con le esperienze; il tempo presente, che è un tempo chiuso; e le incertezze che ci aspettano all’orizzonte, ossia il tempo a venire. Ecco la vita di tutti noi». Podia traduzir isto tudo já que é de tradução que se........

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