Uma questão de peso

Para lá dos usos legítimos no tratamento da diabetes e obesidade, o semaglutido tem sido utilizado com propósitos meramente cosméticos. Estas utilizações injustificadas originaram escassez do fármaco nos mercados mundiais.

O semaglutido é provavelmente um dos fármacos mais notáveis dos últimos anos. Desenvolvido originalmente para controlar a glicémia na diabetes tipo 2, a sua capacidade para reduzir o peso e apetite revolucionou de forma inesperada o tratamento da obesidade crónica. Adicionalmente, acumulam-se evidências de que os seus benefícios se estendem à redução do risco de ataques cardíacos e acidentes vasculares cerebrais (AVCs). Em estudo encontram-se também eventuais aplicações no controlo da adição alcoólica e tabágica. Para lá dos usos legítimos no tratamento da diabetes e obesidade, o semaglutido tem sido utilizado com propósitos meramente cosméticos. Estas utilizações injustificadas originaram escassez do fármaco nos mercados mundiais. O desafio atual passa assim pela instituição de práticas de prescrição criteriosas que deem acesso prioritário aos pacientes com necessidades médicas genuínas.

A diabetes tipo 2 afeta hoje cerca de 10% da população adulta mundial [1]. A característica chave da doença reside em níveis elevados e persistentes de glucose no sangue, que podem originar complicações cardiovasculares, neuropatias e disfunções renais. A doença não tem parado de aumentar, fruto não só do envelhecimento e da predisposição genética, mas também de alterações no estilo de vida e hábitos alimentares. A partir da segunda metade do século XX, a epidemia da diabetes tipo 2 forçou os sistemas de saúde pública a investir na prevenção e incentivou a comunidade científica a desvendar os mecanismos subjacentes à doença. Estes esforços permitiram a cientistas como Svetlana Mojsov, Daniel Drucker, Jens Juul Holst e Joel Habener identificar uma hormona chave no controlo fisiológico da glucose – o péptido 1 semelhante ao glucagom (GLP-1) [2].

A investigação fundamental do GLP-1 e da sua função permitiu abordar o desenvolvimento de um fármaco para a diabetes tipo 2 de forma racional. Em 2016, e após algumas iterações e versões inferiores, a multinacional dinamarquesa Novo Nordisk, uma das maiores produtoras mundiais de insulina, apresentou às autoridades reguladoras o semaglutido, uma molécula artificial que mimetiza a ação do GLP-1 [1]. Vários ensaios clínicos mostraram que o semaglutido regula os níveis de glucose no sangue e reduz o risco de eventos cardiovasculares em pacientes com diabetes tipo 2. Um dos pontos fortes do fármaco é a sua ação prolongada, que permite administrações semanais únicas, mais convenientes para os pacientes. Apesar de alguns efeitos secundários de natureza gastrointestinal, os ensaios revelaram um perfil de segurança favorável. Mas, verdadeiramente surpreendentes foram os resultados que mostraram que o semaglutido induzia perdas de peso significativas (até 15% em 16 meses) e reduzia o apetite dos participantes. A constatação de que poderia ser usado para tratar a obesidade foi imediata. Face a estas evidências, o semaglutido acabaria por ser aprovado pelas agências reguladoras não só para o tratamento da diabetes tipo 2, sob o nome Ozempic, mas também para o tratamento da obesidade, sob o nome Wegovy [1].

Mais do que a diabetes tipo 2, a obesidade constitui uma crise de saúde pública mundial. Nos EUA, cerca de 70% dos adultos têm excesso de peso e na Europa esse número supera os 50% [1]. A obesidade potencia não só a diabetes tipo 2, mas também doenças cardíacas, artrite, doença hepática e certos tipos de cancro. A entrada em cena do semaglutido revolucionou o tratamento da obesidade de forma inesperada. Para lá da redução de peso, os benefícios adicionais para a saúde parecem ser evidentes. Por exemplo, em 2023 foram reportadas reduções de 20% no risco de ataques cardíacos fatais e não fatais numa coorte de 17000 pacientes não diabéticos com excesso de peso e doença cardiovascular [3]. O alcance do fármaco poderá ser ainda maior, estendendo-se ao tratamento da adição alcoólica ou tabágica. Esta potencial aplicação terapêutica emergiu na sequência de relatos de pacientes com diabetes e obesidade que descreveram uma vontade decrescida de consumir vinho ou tabaco durante o tratamento com semaglutido.

A utilização no tratamento da obesidade tornou o semaglutido num campeão de vendas e empurrou a Novo Nordisk para um valor de mercado superior ao PIB da Dinamarca [1]. Apesar do sucesso indiscutível, algumas incógnitas permanecem. À medida que aumentam os utilizadores, começam a acumular-se os registos de efeitos gastrointestinais adversos que podem incluir obstrução intestinal e pancreatites. Observa-se também um aumento dos usos injustificados por pessoas que, sem qualquer necessidade médica, apenas desejam perder peso por razões cosméticas. Para lá da exposição a riscos desnecessários, esta procura adicional originou uma escassez do fármaco no mercado, reduzindo o seu acesso aos verdadeiramente necessitados. É também já claro que a suspensão da terapia é acompanhada por uma recuperação do peso perdido após algum tempo. O uso crónico poderá assim ser inevitável para muitos. Finalmente, o custo elevado constitui uma barreira significativa, que limita o acesso equitativo ao semaglutido para muitas pessoas que lutam contra a obesidade. Ainda assim, a luta contra a obesidade tem hoje no semaglutido o seu melhor aliado.

[1] Couzin-Franke, J., (2023) Obesity meets its match? Science, 382, 1227.
[2] Couzin-Franke, J., (2023) Sidelined, Science, 381, 1274-1277.
[3] Lincoff, A.M. et al. (2023) Semaglutide and cardiovascular outcomes in obesity without diabetes, N. Engl. J Med, 389, 2221-2232.

Professor do Instituto Superior Técnico

miguelprazeres@tecnico.ulisboa.pt

O semaglutido é provavelmente um dos fármacos mais notáveis dos últimos anos. Desenvolvido originalmente para controlar a glicémia na diabetes tipo 2, a sua capacidade para reduzir o peso e apetite revolucionou de forma inesperada o tratamento da obesidade crónica. Adicionalmente, acumulam-se evidências de que os seus benefícios se estendem à redução do risco de ataques cardíacos e acidentes vasculares cerebrais (AVCs). Em estudo encontram-se também eventuais aplicações no controlo da adição alcoólica e tabágica. Para lá dos usos legítimos no tratamento da diabetes e obesidade, o semaglutido tem sido utilizado com propósitos meramente cosméticos. Estas utilizações injustificadas originaram escassez do fármaco nos mercados mundiais. O desafio atual passa assim pela instituição de práticas de prescrição criteriosas que deem acesso prioritário aos pacientes com necessidades médicas genuínas.

A diabetes tipo 2 afeta hoje cerca de 10% da população adulta mundial [1]. A característica chave da doença reside em níveis elevados e persistentes de glucose no sangue, que podem originar complicações cardiovasculares, neuropatias e disfunções renais. A doença não tem parado de aumentar, fruto não só do envelhecimento e da predisposição genética, mas também de alterações no estilo de vida e hábitos alimentares. A partir da segunda metade do século XX, a epidemia da diabetes tipo 2 forçou os sistemas de saúde pública a investir na prevenção e incentivou a comunidade científica a desvendar os mecanismos subjacentes à doença. Estes esforços permitiram a cientistas como Svetlana Mojsov, Daniel Drucker, Jens Juul Holst e Joel Habener identificar uma hormona chave no controlo fisiológico da glucose – o péptido 1 semelhante ao glucagom (GLP-1) [2].

A investigação fundamental do GLP-1 e da sua função permitiu abordar o desenvolvimento de um fármaco para a diabetes tipo 2 de forma racional. Em 2016, e após algumas iterações e versões inferiores, a multinacional dinamarquesa Novo Nordisk, uma das maiores produtoras mundiais de insulina, apresentou às autoridades reguladoras o semaglutido, uma molécula artificial que mimetiza a ação do GLP-1 [1]. Vários ensaios clínicos mostraram que o semaglutido regula os níveis de glucose no sangue e reduz o risco de eventos cardiovasculares em pacientes com diabetes tipo 2. Um dos pontos fortes do fármaco é a sua ação prolongada, que permite administrações semanais únicas, mais convenientes para os pacientes. Apesar de alguns efeitos secundários de natureza gastrointestinal, os ensaios revelaram um perfil de segurança favorável. Mas, verdadeiramente surpreendentes foram os resultados que mostraram que o semaglutido induzia perdas de peso significativas (até 15% em 16 meses) e reduzia o apetite dos participantes. A constatação de que poderia ser usado para tratar a obesidade foi imediata. Face a estas evidências, o semaglutido acabaria por ser aprovado pelas agências reguladoras não só para o tratamento da diabetes tipo 2, sob o nome Ozempic, mas também para o tratamento da obesidade, sob o nome Wegovy [1].

Mais do que a diabetes tipo 2, a obesidade constitui uma crise de saúde pública mundial. Nos EUA, cerca de 70% dos adultos têm excesso de peso e na Europa esse número supera os 50% [1]. A obesidade potencia não só a diabetes tipo 2, mas também doenças cardíacas, artrite, doença hepática e certos tipos de cancro. A entrada em cena do semaglutido revolucionou o tratamento da obesidade de forma inesperada. Para lá da redução de peso, os benefícios adicionais para a saúde parecem ser evidentes. Por exemplo, em 2023 foram reportadas reduções de 20% no risco de ataques cardíacos fatais e não fatais numa coorte de 17000 pacientes não diabéticos com excesso de peso e doença cardiovascular [3]. O alcance do fármaco poderá ser ainda maior, estendendo-se ao tratamento da adição alcoólica ou tabágica. Esta potencial aplicação terapêutica emergiu na sequência de relatos de pacientes com diabetes e obesidade que descreveram uma vontade decrescida de consumir vinho ou tabaco durante o tratamento com semaglutido.

A utilização no tratamento da obesidade tornou o semaglutido num campeão de vendas e empurrou a Novo Nordisk para um valor de mercado superior ao PIB da Dinamarca [1]. Apesar do sucesso indiscutível, algumas incógnitas permanecem. À medida que aumentam os utilizadores, começam a acumular-se os registos de efeitos gastrointestinais adversos que podem incluir obstrução intestinal e pancreatites. Observa-se também um aumento dos usos injustificados por pessoas que, sem qualquer necessidade médica, apenas desejam perder peso por razões cosméticas. Para lá da exposição a riscos desnecessários, esta procura adicional originou uma escassez do fármaco no mercado, reduzindo o seu acesso aos verdadeiramente necessitados. É também já claro que a suspensão da terapia é acompanhada por uma recuperação do peso perdido após algum tempo. O uso crónico poderá assim ser inevitável para muitos. Finalmente, o custo elevado constitui uma barreira significativa, que limita o acesso equitativo ao semaglutido para muitas pessoas que lutam contra a obesidade. Ainda assim, a luta contra a obesidade tem hoje no semaglutido o seu melhor aliado.

[1] Couzin-Franke, J., (2023) Obesity meets its match? Science, 382, 1227.
[2] Couzin-Franke, J., (2023) Sidelined, Science, 381, 1274-1277.
[3] Lincoff, A.M. et al. (2023) Semaglutide and cardiovascular outcomes in obesity without diabetes, N. Engl. J Med, 389, 2221-2232.

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19.03.2024

Uma questão de peso

Para lá dos usos legítimos no tratamento da diabetes e obesidade, o semaglutido tem sido utilizado com propósitos meramente cosméticos. Estas utilizações injustificadas originaram escassez do fármaco nos mercados mundiais.

O semaglutido é provavelmente um dos fármacos mais notáveis dos últimos anos. Desenvolvido originalmente para controlar a glicémia na diabetes tipo 2, a sua capacidade para reduzir o peso e apetite revolucionou de forma inesperada o tratamento da obesidade crónica. Adicionalmente, acumulam-se evidências de que os seus benefícios se estendem à redução do risco de ataques cardíacos e acidentes vasculares cerebrais (AVCs). Em estudo encontram-se também eventuais aplicações no controlo da adição alcoólica e tabágica. Para lá dos usos legítimos no tratamento da diabetes e obesidade, o semaglutido tem sido utilizado com propósitos meramente cosméticos. Estas utilizações injustificadas originaram escassez do fármaco nos mercados mundiais. O desafio atual passa assim pela instituição de práticas de prescrição criteriosas que deem acesso prioritário aos pacientes com necessidades médicas genuínas.

A diabetes tipo 2 afeta hoje cerca de 10% da população adulta mundial [1]. A característica chave da doença reside em níveis elevados e persistentes de glucose no sangue, que podem originar complicações cardiovasculares, neuropatias e disfunções renais. A doença não tem parado de aumentar, fruto não só do envelhecimento e da predisposição genética, mas também de alterações no estilo de vida e hábitos alimentares. A partir da segunda metade do século XX, a epidemia da diabetes tipo 2 forçou os sistemas de saúde pública a investir na prevenção e incentivou a comunidade científica a desvendar os mecanismos subjacentes à doença. Estes esforços permitiram a cientistas como Svetlana Mojsov, Daniel Drucker, Jens Juul Holst e Joel Habener identificar uma hormona chave no controlo fisiológico da glucose – o péptido 1 semelhante ao glucagom (GLP-1) [2].

A investigação fundamental do GLP-1 e da sua função permitiu abordar o desenvolvimento de um fármaco para a diabetes tipo 2 de forma racional. Em 2016, e após algumas iterações e versões inferiores, a multinacional dinamarquesa Novo Nordisk, uma das maiores produtoras mundiais de insulina, apresentou às autoridades reguladoras o semaglutido, uma molécula artificial que mimetiza a ação do GLP-1 [1]. Vários ensaios clínicos mostraram que o semaglutido regula os níveis de glucose no sangue e reduz o risco de eventos cardiovasculares em pacientes com diabetes tipo 2. Um dos pontos fortes do fármaco é a sua ação prolongada, que permite administrações semanais únicas, mais convenientes para os pacientes. Apesar de alguns efeitos secundários de natureza gastrointestinal, os ensaios revelaram um perfil de segurança favorável. Mas, verdadeiramente surpreendentes foram os resultados que mostraram que o semaglutido induzia perdas de peso significativas (até 15% em 16 meses) e reduzia o apetite dos participantes. A constatação de que poderia ser usado para tratar a obesidade foi imediata. Face a estas evidências, o semaglutido acabaria por ser aprovado pelas agências reguladoras não só para o tratamento da diabetes tipo 2, sob o nome Ozempic, mas também para o tratamento da obesidade, sob o nome Wegovy [1].

Mais do que a diabetes tipo 2, a obesidade constitui uma crise de saúde pública mundial. Nos EUA, cerca de 70% dos adultos têm excesso de peso e na Europa esse número supera os 50% [1]. A obesidade potencia não só a diabetes tipo 2, mas também doenças cardíacas, artrite, doença........

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