Cura por edição génica

O curtíssimo hiato entre descoberta e terapia constitui um testemunho da velocidade atual do progresso científico na área das ciências Biomédicas.

A invenção da técnica de edição de genes CRISPR no início da década de 2010 foi seguida por promessas de tratamentos inovadores. Pouco mais de uma década depois, essa promessa cumpriu-se na forma de uma terapia para a anemia falciforme e a talassemia beta. A terapia em causa envolve a recolha de células da medula dos pacientes, a modificação laboratorial de um certo gene nessas células e a posterior reimplantação das mesmas. Os excelentes resultados obtidos em ensaios clínicos levaram à aprovação em tempo recorde da terapia no Reino Unido e nos EUA. Verdadeiramente inaudito, este curtíssimo hiato entre descoberta e terapia constitui um testemunho da velocidade atual do progresso científico na área das ciências Biomédicas.

O sistema CRISPR (acrónimo de “Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats”) para editar genes foi desenvolvido no início da década de 2010 pelas investigadoras Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier, que viriam a ser premiadas pelo feito com o prémio Nobel da Química em 2020. O trabalho seminal de Doudna e Charpentier foi seguido pela publicação de milhares de artigos científicos que mostraram ser possível alterar células por edição dos seus genes usando CRISPR. Esta capacidade de adicionar, remover ou modificar informações genéticas ao nível molecular permite efetuar ajustes muito precisos no código genético de um organismo vivo. As características revolucionárias da técnica permitiram desde logo antever o seu potencial para corrigir erros pontuais subjacentes a muitas doenças genéticas debilitantes. A previsão de um futuro em que a cura de doenças por edição génica seria possível não foi particularmente arrojada, assim que se percebeu que a técnica CRISPR permitia, de facto, modificar material genético. No entanto, nem os mais otimistas esperariam que a primeira terapia génica com base em CRISPR fosse aprovada apenas 12 anos após o seu desenvolvimento. Efetivamente, a realidade mostra que o intervalo entre a invenção de um método inovador e a aprovação de uma terapia eficaz e segura é prolongado, devido a um rigoroso processo de investigação com ensaios clínicos, regulação, desafios logísticos e questões éticas.

A anemia falciforme e a talassemia beta são causadas por mutações no gene da beta-globina, que codifica um componente da hemoglobina. Esta proteína dos glóbulos vermelhos é essencial para transportar oxigénio no corpo. Naquelas duas hemoglobinopatias, e devido a um erro genético, os pacientes possuem uma hemoglobina defeituosa, que afeta a função dos glóbulos vermelhos, originando vários sintomas debilitantes. O único tratamento eficaz para curar a anemia falciforme e a talassemia beta consiste num transplante de medula. Esta intervenção apresenta, no entanto, riscos significativos, incluindo a possibilidade de rejeição, que pode ser fatal. A terapia CRISPR inovadora de nome Casgevy, desenvolvida pelas empresas Vertex Pharmaceuticals e CRISPR Therapeutics, explora o facto de os humanos produzirem um tipo ligeiramente diferente de hemoglobina durante o seu desenvolvimento fetal. Na maioria dos casos, o gene com instruções para produzir esta hemoglobina fetal é desativado pouco após o parto, passando os nascituros a produzir a hemoglobina regular. A terapia Casgevy usa edição génica baseada em CRISPR para reativar o gene, não defeituoso, da hemoglobina fetal, permitindo que células do sangue voltem a produzir hemoglobina fetal [1,2].

O procedimento terapêutico envolve a colheita de células estaminais da medula óssea dos pacientes e a edição em laboratório do gene inativo da hemoglobina fetal. As células editadas, readquirem assim a capacidade produzir hemoglobina fetal, sendo retornadas ao paciente e reimplantando-se na medula óssea. Como as células modificadas são do próprio paciente, o risco de complicações ao nível de rejeição é praticamente nulo. Esta abordagem foi muito bem-sucedida em ensaios clínicos, com o aumento dos níveis de hemoglobina fetal a ser suficiente para compensar o impacto negativo da hemoglobina defeituosa - de 71 pacientes acompanhados por mais de um ano, 67 conseguiram interromper o tratamento (talassemia) ou ficaram livres de episódios de dor (anemia falciforme). Adicionalmente não foram registados efeitos secundários graves. Como resultado, a terapia foi aprovada no Reino Unido e nos EUA no final de 2023 [1,2]. Apesar da aprovação relâmpago, o progresso na adoção da terapia deverá ser lento. Por um lado, e sendo os ensaios clínicos recentes, ainda não se sabe se o efeito terapêutico se mantém ao longo da vida ou se o sistema CRISPR criou modificações danosas fora do alvo. Acresce que as infraestruturas de saúde necessárias para administrar a terapia são limitadas e que o custo estimado pode atingir os 2 milhões de dólares por paciente [1,2].

A complexidade intrínseca aos processos de tradução de descobertas das Ciências da Vida para a Medicina contribui para um atraso, por vezes exasperante, na introdução de terapias seguras e eficazes. No caso da terapia CRISPR, a rápida tradução da investigação em prática clínica deverá ter sido impulsionada por fatores vários, incluindo investigação científica de base, avanços tecnológicos e métodos de ensaio mais eficientes, coordenação ágil entre investigadores e agências reguladoras e investimentos significativos. Independentemente das razões, a introdução bem-sucedida da primeira terapia por edição de genes constitui um marco importante, sinalizando a viabilidade da abordagem, lançando pistas para a regulação e estimulando o interesse, investimento e desenvolvimento de terapias equivalentes.

Professor e Investigador do Instituto Superior Técnico

[1] Sheridan, C., (2023) The world’s first CRISPR therapy is approved: who will receive it? Nature Biotechnology, Nov 21.
[2] Davies, K., (2023) FDA Approves Casgevy, the First CRISPR Therapy, for Sickle Cell Disease, Gne News, Dez 8.

A invenção da técnica de edição de genes CRISPR no início da década de 2010 foi seguida por promessas de tratamentos inovadores. Pouco mais de uma década depois, essa promessa cumpriu-se na forma de uma terapia para a anemia falciforme e a talassemia beta. A terapia em causa envolve a recolha de células da medula dos pacientes, a modificação laboratorial de um certo gene nessas células e a posterior reimplantação das mesmas. Os excelentes resultados obtidos em ensaios clínicos levaram à aprovação em tempo recorde da terapia no Reino Unido e nos EUA. Verdadeiramente inaudito, este curtíssimo hiato entre descoberta e terapia constitui um testemunho da velocidade atual do progresso científico na área das ciências Biomédicas.

O sistema CRISPR (acrónimo de “Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats”) para editar genes foi desenvolvido no início da década de 2010 pelas investigadoras Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier, que viriam a ser premiadas pelo feito com o prémio Nobel da Química em 2020. O trabalho seminal de Doudna e Charpentier foi seguido pela publicação de milhares de artigos científicos que mostraram ser possível alterar células por edição dos seus genes usando CRISPR. Esta capacidade de adicionar, remover ou modificar informações genéticas ao nível molecular permite efetuar ajustes muito precisos no código genético de um organismo vivo. As características revolucionárias da técnica permitiram desde logo antever o seu potencial para corrigir erros pontuais subjacentes a muitas doenças genéticas debilitantes. A previsão de um futuro em que a cura de doenças por edição génica seria possível não foi particularmente arrojada, assim que se percebeu que a técnica CRISPR permitia, de facto, modificar material genético. No entanto, nem os mais otimistas esperariam que a primeira terapia génica com base em CRISPR fosse aprovada apenas 12 anos após o seu desenvolvimento. Efetivamente, a realidade mostra que o intervalo entre a invenção de um método inovador e a aprovação de uma terapia eficaz e segura é prolongado, devido a um rigoroso processo de investigação com ensaios clínicos, regulação, desafios logísticos e questões éticas.

A anemia falciforme e a talassemia beta são causadas por mutações no gene da beta-globina, que codifica um componente da hemoglobina. Esta proteína dos glóbulos vermelhos é essencial para transportar oxigénio no corpo. Naquelas duas hemoglobinopatias, e devido a um erro genético, os pacientes possuem uma hemoglobina defeituosa, que afeta a função dos glóbulos vermelhos, originando vários sintomas debilitantes. O único tratamento eficaz para curar a anemia falciforme e a talassemia beta consiste num transplante de medula. Esta intervenção apresenta, no entanto, riscos significativos, incluindo a possibilidade de rejeição, que pode ser fatal. A terapia CRISPR inovadora de nome Casgevy, desenvolvida pelas empresas Vertex Pharmaceuticals e CRISPR Therapeutics, explora o facto de os humanos produzirem um tipo ligeiramente diferente de hemoglobina durante o seu desenvolvimento fetal. Na maioria dos casos, o gene com instruções para produzir esta hemoglobina fetal é desativado pouco após o parto, passando os nascituros a produzir a hemoglobina regular. A terapia Casgevy usa edição génica baseada em CRISPR para reativar o gene, não defeituoso, da hemoglobina fetal, permitindo que células do sangue voltem a produzir hemoglobina fetal [1,2].

O procedimento terapêutico envolve a colheita de células estaminais da medula óssea dos pacientes e a edição em laboratório do gene inativo da hemoglobina fetal. As células editadas, readquirem assim a capacidade produzir hemoglobina fetal, sendo retornadas ao paciente e reimplantando-se na medula óssea. Como as células modificadas são do próprio paciente, o risco de complicações ao nível de rejeição é praticamente nulo. Esta abordagem foi muito bem-sucedida em ensaios clínicos, com o aumento dos níveis de hemoglobina fetal a ser suficiente para compensar o impacto negativo da hemoglobina defeituosa - de 71 pacientes acompanhados por mais de um ano, 67 conseguiram interromper o tratamento (talassemia) ou ficaram livres de episódios de dor (anemia falciforme). Adicionalmente não foram registados efeitos secundários graves. Como resultado, a terapia foi aprovada no Reino Unido e nos EUA no final de 2023 [1,2]. Apesar da aprovação relâmpago, o progresso na adoção da terapia deverá ser lento. Por um lado, e sendo os ensaios clínicos recentes, ainda não se sabe se o efeito terapêutico se mantém ao longo da vida ou se o sistema CRISPR criou modificações danosas fora do alvo. Acresce que as infraestruturas de saúde necessárias para administrar a terapia são limitadas e que o custo estimado pode atingir os 2 milhões de dólares por paciente [1,2].

A complexidade intrínseca aos processos de tradução de descobertas das Ciências da Vida para a Medicina contribui para um atraso, por vezes exasperante, na introdução de terapias seguras e eficazes. No caso da terapia CRISPR, a rápida tradução da investigação em prática clínica deverá ter sido impulsionada por fatores vários, incluindo investigação científica de base, avanços tecnológicos e métodos de ensaio mais eficientes, coordenação ágil entre investigadores e agências reguladoras e investimentos significativos. Independentemente das razões, a introdução bem-sucedida da primeira terapia por edição de genes constitui um marco importante, sinalizando a viabilidade da abordagem, lançando pistas para a regulação e estimulando o interesse, investimento e desenvolvimento de terapias equivalentes.

Professor e Investigador do Instituto Superior Técnico

[1] Sheridan, C., (2023) The world’s first CRISPR therapy is approved: who will receive it? Nature Biotechnology, Nov 21.
[2] Davies, K., (2023) FDA Approves Casgevy, the First CRISPR Therapy, for Sickle Cell Disease, Gne News, Dez 8.

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O curtíssimo hiato entre descoberta e terapia constitui um testemunho da velocidade atual do progresso científico na área das ciências Biomédicas.

A invenção da técnica de edição de genes CRISPR no início da década de 2010 foi seguida por promessas de tratamentos inovadores. Pouco mais de uma década depois, essa promessa cumpriu-se na forma de uma terapia para a anemia falciforme e a talassemia beta. A terapia em causa envolve a recolha de células da medula dos pacientes, a modificação laboratorial de um certo gene nessas células e a posterior reimplantação das mesmas. Os excelentes resultados obtidos em ensaios clínicos levaram à aprovação em tempo recorde da terapia no Reino Unido e nos EUA. Verdadeiramente inaudito, este curtíssimo hiato entre descoberta e terapia constitui um testemunho da velocidade atual do progresso científico na área das ciências Biomédicas.

O sistema CRISPR (acrónimo de “Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats”) para editar genes foi desenvolvido no início da década de 2010 pelas investigadoras Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier, que viriam a ser premiadas pelo feito com o prémio Nobel da Química em 2020. O trabalho seminal de Doudna e Charpentier foi seguido pela publicação de milhares de artigos científicos que mostraram ser possível alterar células por edição dos seus genes usando CRISPR. Esta capacidade de adicionar, remover ou modificar informações genéticas ao nível molecular permite efetuar ajustes muito precisos no código genético de um organismo vivo. As características revolucionárias da técnica permitiram desde logo antever o seu potencial para corrigir erros pontuais subjacentes a muitas doenças genéticas debilitantes. A previsão de um futuro em que a cura de doenças por edição génica seria possível não foi particularmente arrojada, assim que se percebeu que a técnica CRISPR permitia, de facto, modificar material genético. No entanto, nem os mais otimistas esperariam que a primeira terapia génica com base em CRISPR fosse aprovada apenas 12 anos após o seu desenvolvimento. Efetivamente, a realidade mostra que o intervalo entre a invenção de um método inovador e a aprovação de uma terapia eficaz e segura é prolongado, devido a um rigoroso processo de investigação com ensaios clínicos, regulação, desafios logísticos e questões éticas.

A anemia falciforme e a talassemia beta são causadas por mutações no gene da beta-globina, que codifica um componente da hemoglobina. Esta proteína dos glóbulos vermelhos é essencial para transportar oxigénio no corpo. Naquelas duas hemoglobinopatias, e devido a um erro genético, os pacientes possuem uma hemoglobina defeituosa, que afeta a função dos glóbulos vermelhos, originando vários sintomas debilitantes. O único tratamento eficaz para curar a anemia falciforme e a talassemia beta consiste num transplante de medula. Esta intervenção apresenta, no entanto, riscos significativos, incluindo a possibilidade de rejeição, que pode ser fatal. A terapia CRISPR inovadora de nome Casgevy, desenvolvida pelas empresas Vertex Pharmaceuticals e CRISPR Therapeutics, explora o facto de os humanos produzirem um tipo ligeiramente diferente de hemoglobina durante o seu desenvolvimento fetal. Na maioria dos casos, o gene com instruções para produzir esta hemoglobina fetal é desativado pouco após o parto, passando os nascituros a produzir a hemoglobina regular. A terapia Casgevy usa edição génica baseada em CRISPR para reativar o gene, não defeituoso, da hemoglobina fetal, permitindo que células do sangue voltem a produzir hemoglobina fetal [1,2].

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