1. Há um quadro de João Vaz de Carvalho que ilustra bem o que foi o 25 de Abril de 1974. O que foi e o que continua a ser. No quadro, vemos um homem desenhado ao estilo do autor, meio atarracado, de casaco aos quadrados acastanhados e a segurar uma pasta na mão direita. Está de olhos postos na luz que emana de um cravo-candeeiro. À volta, a escuridão.

2. Nos 50 anos de Abril, há um partido populista e demagógico, com laivos racistas e xenófobos, que elege 50 deputados à Assembleia da República. O ovo da serpente cria raízes no nosso regime democrático, qual metástase de um tumor maligno. Talvez não haja um milhão de portugueses racistas e xenófobos, mas há um milhão de portugueses que vota num partido que assume essas posições, mais não seja nos dias ímpares.

3. Talvez não exista um milhão de portugueses racistas, mas o European Social Survey não deixa dúvidas: 62% dos portugueses manifestam racismo ao concordar que existem grupos étnicos ou raciais que, por natureza, são mais inteligentes e trabalhadores.

4. Num episódio dos Simpsons, Homer dá-nos uma das suas lições de vida: “Just remember, if something goes wrong at the plant, blame the guy who can’t speak English”. Atitude que é reflexo da “manifestação de um impulso primitivo que sobrevive nas nossas mentes: a tentação de atribuir a culpa a outro”. É daí que vem a expressão ‘bode expiatório’, reminiscência/recordatório dos machos caprinos apedrejados no deserto como forma de expiação dos pecados da comunidade. (Irene Vallejo)

Ao virar da esquina está sempre um flautista que nos incita a arreganhar os dentes a um qualquer inimigo inventado, não interessando se hoje é a Eurásia e amanhã a Lestásia, se hoje são os 3,8% de ciganos que recebem o RSI (vá, verifiquem lá o Polígrafo) e ontem foi a igualdade de género. É sempre preciso extirpar o que é estranho, sem entender que “os muros não nos salvam”. Acreditamos “que é possível fechar os outros lá fora”, quando, “na verdade, os prisioneiros mentais são os que ficam lá dentro”. (Irene Vallejo).

5. O demagogo faz tábua rasa da coerência discursiva e do bom senso. Desafia o discurso do oponente distorcendo factos e assentando a sua estratégia em falsas promessas e vagas utopias, quase sempre embrulhadas numa mistela de gritaria e vitimização. A nada se furta no caminho para ganhar as massas. Já na democracia ateniense o demagogo se assumia como líder dos descontentes e revoltados do povo, apelando às suas emoções mais primitivas e investindo contra “os do sistema”. Talvez tenha sido Aristóteles o primeiro a definir a demagogia como uma “forma corrupta ou degenerada da República” e o demagogo como o “bajulador do povo”, aquele que se assume como iluminado intérprete dos seus interesses e seu único representante. Ontem, como hoje, a demagogia é o verme que corrói a democracia.

6. Aurora Rodrigues, antiga magistrada do Ministério Público, foi presa pela PIDE aos 21 anos e levada para Caxias, onde foi submetida a longos períodos de tortura. Tem 72 anos — é uma senhora de certa idade, “mas toda a gente tem uma certa idade” — e esteve no Fundão a avivar-nos a memória: — “Há coisas que eu não tenho o direito de esquecer e tinha a obrigação de contar. Contra a desmemória. Contra o branqueamento. Porque os ditadores aparecem sempre em momentos de crise, e aparecem sempre a prometer este mundo e o outro. (…) A democracia cometeu erros tremendos. Desprezam-se as pessoas e depois vai-se lá pedir o voto. Tem acontecido. Só que a democracia tem emenda. Nós podemos renová-la. Podemos melhorá-la. Na democracia, mesmo que não nos ouçam, nós temos voz e não nos prendem, e na ditadura nós não temos voz, toda a gente se cala, toda a gente fica em silêncio.”

7. Há um poema de Alexandre O’Neill que nos diz que o medo vai ter tudo, “ou quase tudo / e cada um por seu caminho / havemos todos de chegar / quase todos / a ratos / Sim / a ratos”.

8. Há um quadro de João Vaz de Carvalho que é todo ele escuridão, salvo por um foco de luz, ao centro, que emana de um cravo-candeeiro e ilumina e envolve um homem de casaco aos quadrados acastanhados. Há um quadro de João Vaz de Carvalho em que podemos optar por ver a escuridão ou a luz.


QOSHE - A escuridão em volta e a luz de Abril - Miguel Cardoso
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A escuridão em volta e a luz de Abril

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03.04.2024

1. Há um quadro de João Vaz de Carvalho que ilustra bem o que foi o 25 de Abril de 1974. O que foi e o que continua a ser. No quadro, vemos um homem desenhado ao estilo do autor, meio atarracado, de casaco aos quadrados acastanhados e a segurar uma pasta na mão direita. Está de olhos postos na luz que emana de um cravo-candeeiro. À volta, a escuridão.

2. Nos 50 anos de Abril, há um partido populista e demagógico, com laivos racistas e xenófobos, que elege 50 deputados à Assembleia da República. O ovo da serpente cria raízes no nosso regime democrático, qual metástase de um tumor maligno. Talvez não haja um milhão de portugueses racistas e xenófobos, mas há um milhão de portugueses que vota num partido que assume essas posições, mais não seja nos dias ímpares.

3. Talvez não exista um milhão de portugueses racistas, mas o European Social Survey não deixa dúvidas: 62% dos portugueses manifestam racismo ao concordar que existem grupos étnicos ou raciais que, por natureza, são mais inteligentes e trabalhadores.

4. Num episódio dos Simpsons,........

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