Blinne Ní Ghrálaigh é o seu nome, e penso que muitos nunca tinham ouvido falar desta irlandesa antes de quinta-feira, 11 de Janeiro, dia em que apresentou alegações orais em representação da África do Sul no processo contra Israel por genocídio, no Tribunal Internacional de Justiça, o principal órgão jurisdicional da ONU, com sede na Haia (Países Baixos). Ní Ghrálaigh explicou outrora que uma das razões mais ponderosas que a levou a trilhar o seu percurso foi o facto de um dia ter encontrado, nos papéis da mãe, um panfleto sobre a menina de doze anos, Majella O’Hare – a mesma idade que a sua –, que foi morta a tiro pelas costas por um soldado britânico em 1976 quando seguia por uma estrada com um grupo de crianças a caminho da confissão. Isto deixou-a indignada, e foi em lágrimas perguntar como fora possível isso acontecer, ao que a mãe retorquiu: «Faz alguma coisa sobre isso». Explica que tem esse panfleto emoldurado por sobre a sua mesa de trabalho para a relembrar do que a trouxe ali, e na quinta-feira, 11 de Janeiro, pisou o tapete – com padrões coloridos do Palácio da Paz – para representar a África do Sul, e a sua tradição ubuntu: «eu sou porque tu és»!

Entre outras coisas, esta advogada irlandesa sublinhou o «novo terrível acrónimo» WCNSF – Wounded Child no Surviving Family (Criança ferida sem família sobreviva) e falou do «primeiro genocídio em que as vítimas transmitem a sua própria destruição em tempo real com a desesperada esperança [– esperemos que, como outrora no país que intenta esta acção e requer as medidas provisórias, se possa renomear Boa Esperança onde antes só se via Tormentas –], até agora vã, que o mundo poderá fazer algo». A páginas tantas, ela interpela-nos reiterando a pergunta do pastor Munther Isaac: «onde estava eu quando Gaza estava a passar por um genocídio?». Esta passagem fez-me lembrar uma questão que, de quando em vez, ressurge no debate francês relativamente à ocupação da França pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial: o que teria feito se tivesse aí estado? Colaborado ou resistido?

A anáfora «Each day» (cada dia) que a advogada irlandesa utilizou toca-nos como uma adaga que remói na ferida aberta para nos alertar para alguns dos números lancinantes do conflito Israel – Hamas; cada dia, em média, 247 palestinianos estão a ser mortos e em risco de serem mortos, incluindo 48 mães, duas por hora, e mais de 117 crianças; cada dia, mais de 10 crianças terão uma ou as duas pernas amputadas, muitas sem anestesia». A advogada não falou só de lei, e, por isso, fez jus à mesma.

O New York Times havia pedido a alguns pensadores que se debruçassem sobre o caminho para a Paz em Gaza. Raja Khalidi escreve que os bombardeamentos de Israel já haviam então destruído cerca de metade do edificado de Gaza, o que alguns peritos qualificam de domicídio. Como já aqui referi, domus significa simultaneamente casa e pátria, em latim.

Ainda vivíamos o ano passado quando, de repente, ouço a minha filha Clara de seis anos, ao que logo se juntou a sua irmã Laura de oito, a cantar «Criança da Palestina ou criança de Israel / Da América ou da China, neste dia de Natal [...] / Que as armas se calem e respondam ao apelo / Deste parêntesis / Que se chama Natal» (tradução livre).

Ao começar o ano é imperioso ler a entrevista de Fernando Alves ao PÚBLICO. Diz-nos que o que é perigoso é deixar de ter o desejo de ir ao fim do mundo, ou ao fim da rua. Este desejo deve, por exemplo, fazer-nos querer a libertação dos reféns, vítimas do pérfido ataque do Hamas, e notar que no mesmo dia em que se nomeava em França um primeiro-ministro abertamente homossexual se reprimia ainda mais esta comunidade na Rússia.

QOSHE - Que não seja só um parêntesis - Marco Miranda
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Que não seja só um parêntesis

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16.01.2024

Blinne Ní Ghrálaigh é o seu nome, e penso que muitos nunca tinham ouvido falar desta irlandesa antes de quinta-feira, 11 de Janeiro, dia em que apresentou alegações orais em representação da África do Sul no processo contra Israel por genocídio, no Tribunal Internacional de Justiça, o principal órgão jurisdicional da ONU, com sede na Haia (Países Baixos). Ní Ghrálaigh explicou outrora que uma das razões mais ponderosas que a levou a trilhar o seu percurso foi o facto de um dia ter encontrado, nos papéis da mãe, um panfleto sobre a menina de doze anos, Majella O’Hare – a mesma idade que a sua –, que foi morta a tiro pelas costas por um soldado britânico em 1976 quando seguia por uma estrada com um grupo de crianças a caminho da confissão. Isto deixou-a indignada, e foi em lágrimas perguntar como fora possível isso acontecer, ao que a mãe retorquiu: «Faz alguma coisa sobre isso». Explica que tem esse panfleto........

© JM Madeira


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