Na noite de 7 de março, a [ ] entregou-se ao sono num país onde a estatística já contabilizava cerca de 4 mulheres assassinadas em contextos íntimos desde o início do ano. Mas, ao acordar, encontrou flores na cabeceira – num mundo que, por força do calendário, decidiu que seria dela. Mas só por um dia.

A narrativa é perversa. É que, no ocidente, o Dia da Mulher não passa de uma forma ineficaz e performativa de psicoterapia colectiva. Uma em cada cinco mulheres portuguesas já foi violada? Não foi no dia 8, de certeza. Só 1% dos violadores é que será condenado? Vá, pelo menos é 1% – olha esta rosa que te comprei.

Uma mulher portuguesa recebe quase 17% a menos que um homem? Muda-se a fotografia de perfil da empresa para um cor-de-rosa choque. Sete em cada dez mulheres em Portugal fazem todo o trabalho em casa, depois de trabalhar um dia inteiro? Anima-te, que estamos à frente da Turquia!

É importante, claro, que nos lembremos que, há 60 anos, não poderíamos, nascendo em Portugal, sair do país sem a autorização de um homem, que há pouco mais de 100 anos nenhuma mulher podia votar, que há 20 anos não tínhamos o direito de fazer uma interrupção voluntária da gravidez em segurança – e essas conquistas devem ser celebradas, para que nunca nos esqueçamos do quão fácil é perdê-las.

Mas é igualmente importante lembrar que a violência e a desigualdade persistem, imutáveis e absolutamente indiferentes à homenagem pontual do 8 de Março.

A pergunta assola-me todos os anos: o Dia da Mulher existe para celebrar as conquistas de tantas – que tornaram possível, aliás, a minha escrita aqui –, ou para encenar um mundo em que as mulheres não são esquecidas? O universal é do homem – nós, a exceção.

O hábito é antigo: no século IV a.C., Aristóteles invocava categoricamente o princípio do “masculino por defeito” como verdade absoluta e incontestável.

E o problema é que, quando não somos vistas, os dados masculinos passam a ser únicos. E os resultados estão à vista: a temperatura média dos escritórios está calibrada para ser cerca de cinco graus abaixo do ideal para as mulheres, um padrão obsoleto que remonta aos anos 60, baseando-se no metabolismo de repouso de um homem de 40 anos pesando 70 kg.

Por natureza, o metabolismo feminino é mais lento, o que as deixa em desvantagem. As mulheres apresentam uma probabilidade 50% superior de receber um diagnóstico incorreto após um ataque cardíaco – os ensaios clínicos de insuficiência cardíaca privilegiam participantes masculinos.

Os automóveis são construídos para o corpo masculino, o que significa que, embora os homens tenham, estatisticamente, mais acidentes, uma mulher tem 50% mais probabilidade de ficar gravemente ferida. É o masculino por defeito, o princípio que levou S. Tomás de Aquino a escrever que a mulher é um homem falhado, um ser “ocasional”. Que se seja homem é natural. A humanidade é masculina – e os homens decretaram a mulher como um ser relativo. O homem é o Absoluto; a mulher o Outro.

No poema de Mariel Rukeyser, Édipo indigna-se com Esfinge: “quando se diz homem, também se incluem as mulheres. Toda a gente sabe isso”. Mas, o que Édipo não entende, é que estar na margem é fazer parte do todo, sim – mas sempre fora do corpo principal.

QOSHE - Malmequer? - Maria Castello Branco
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Malmequer?

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08.03.2024

Na noite de 7 de março, a [ ] entregou-se ao sono num país onde a estatística já contabilizava cerca de 4 mulheres assassinadas em contextos íntimos desde o início do ano. Mas, ao acordar, encontrou flores na cabeceira – num mundo que, por força do calendário, decidiu que seria dela. Mas só por um dia.

A narrativa é perversa. É que, no ocidente, o Dia da Mulher não passa de uma forma ineficaz e performativa de psicoterapia colectiva. Uma em cada cinco mulheres portuguesas já foi violada? Não foi no dia 8, de certeza. Só 1% dos violadores é que será condenado? Vá, pelo menos é 1% – olha esta rosa que te comprei.

Uma mulher portuguesa recebe quase 17% a menos que um homem? Muda-se a fotografia de perfil da empresa para um cor-de-rosa choque. Sete em cada dez mulheres em Portugal fazem todo o trabalho em........

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