Recuar 50 anos no tempo é entrar noutro mundo. Sobretudo, no caso português. Vivíamos uma guerra sem solução, que hipotecou a vida de uma geração, governados por um regime anacrónico, que insistia no mito providencialista, construído na década de 1930, da excecionalidade portuguesa. Para manter a ficção e, com esta, a sua sobrevivência, o regime ditatorial condicionava a informação e liberdade de expressão. Vigiava e prendia opositores, censurava e apreendia livros, não tolerava visões contrárias, nem aceitava alternativas políticas.

Para a maioria, a vida era de uma crueldade inaceitável. No inicio da década de 1970, a taxa de analfabetismo rondava os 25%. Nas terras isoladas do interior, tremia-se de frio e enganava-se a fome com azeitonas e bolotas. As crianças começavam a trabalhar com 10, 12 anos, para ajudar a família e, com sorte, amealhar algum dinheiro para prosseguir os estudos. Muitos partiam, numa primeira fase ainda para o Brasil, depois, sobretudo para França e Alemanha. As pessoas viviam sem cuidados de saúde e isoladas do mundo. Em muitos indicadores, Portugal estava perto do ponto em que os países europeus desenvolvidos estavam no início do século XX.

Em Espanha, foi possível deixar para trás este mundo a preto e branco através de reformas legais. Tal revelou-se impossível em Portugal, pois o regime ditatorial estava preso à falácia do “Portugal do Minho a Timor”, baseada na defesa de uma integridade territorial que, afinal, nem sequer tinha 100 anos. Com o fim da tímida “primavera marcelista”, a mudança só poderia chegar por uma revolução, que aconteceu há precisamente 50 anos.

Como então afirmou Francisco Sá Carneiro, o atraso de Portugal era tal que as medidas a aplicar tinham de ser necessariamente muito progressistas. As ideias políticas têm de adaptar-se ao contexto histórico, e é preciso aceitá-lo para perceber os factos.

Hoje, olhamos para o 25 de abril com o conforto interpretativo de uma perspetiva de 50 anos. A distância oferece-nos foco mas, também, e paradoxalmente, uma maior dificuldade em olhar para os anos da revolução e compreender erros e excessos de vários quadrantes, quase inevitáveis durante uma fase tão complexa e com problemas tão urgentes a resolver.

O 25 de abril faz cinquenta anos daqui a dias. Olhando para trás, este foi o ponto de partida para décadas globalmente positivas, que evoluíram para a consolidação da democracia representativa e para a opção decisiva pela integração plena no espaço europeu. Sem estes dois pilares, Portugal continuaria a preto e branco.

Em 1999, aquando dos 25 anos do 25 de abril, viviam-se tempos de otimismo. Na altura, partimos, pois, de um ponto de partida positivo para construir os 25 anos seguintes. Hoje, o ponto de partida é exatamente o oposto. O espaço público está crispado e o debate radicalizado. Desta vez, partimos de um ponto mais pessimista para construir o futuro, mas isto não significa que esse tenha de ser o resultado à chegada.

Quase ninguém pensa nisto, mas estamos já a construir o Portugal de 2049 e 2074. A nossa responsabilidade pelo futuro é total, tal como era há 50 anos. Como será Portugal em 2074, nos 100 anos do 25 de abril? Esta é uma boa altura para pensarmos nisto.

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Como será o Portugal de 2074, nos 100 anos do 25 de abril?

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11.04.2024

Recuar 50 anos no tempo é entrar noutro mundo. Sobretudo, no caso português. Vivíamos uma guerra sem solução, que hipotecou a vida de uma geração, governados por um regime anacrónico, que insistia no mito providencialista, construído na década de 1930, da excecionalidade portuguesa. Para manter a ficção e, com esta, a sua sobrevivência, o regime ditatorial condicionava a informação e liberdade de expressão. Vigiava e prendia opositores, censurava e apreendia livros, não tolerava visões contrárias, nem aceitava alternativas políticas.

Para a maioria, a vida era de uma crueldade inaceitável. No inicio da década de 1970, a taxa de analfabetismo rondava os 25%. Nas terras isoladas do interior, tremia-se de frio e enganava-se a fome com azeitonas e bolotas. As crianças começavam a trabalhar com 10, 12 anos, para ajudar a........

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