O dia 9 de maio é o dia em que se comemora o Dia da Europa, em referência à Declaração Schuman, proferida no rescaldo da Segunda Guerra Mundial pelo então ministro francês dos Negócios Estrangeiros. A ideia de base da declaração é a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), precursora da União Europeia, sugerindo que a cooperação e a interdependência económica seriam uma forma de evitar um retorno ao passado de divisão e violência. De acordo com Schuman, foi “por a Europa não se ter unido [que] tivemos a guerra”.

Passados 74 anos desta declaração, e no dia em que se festeja a paz e a unidade do continente europeu, é tempo de olhar para o presente e repensar os rumos que este projeto tem tomado, assim como as suas perspetivas para o futuro. Num breve século XXI já marcado por crises e instabilidades, tanto internas quanto na vizinhança, os valores fundadores da União Europeia, nomeadamente a dignidade humana, a liberdade, a democracia, a igualdade, o Estado de Direito e os direitos humanos nunca foram tão postos em causa. Da saída do Reino Unido que nos trouxe a Europa dos 27, à (má) gestão do que nos acostumamos a chamar erroneamente de “crise” dos refugiados, passando pelos discursos estereotipados, culpabilizadores e infantilizadores acerca do sul europeu no desenrolar da crise – esta sim - das dívidas soberanas, e terminando com o crescimento de projetos iliberais que brotam qual cogumelo no seio da União, observa-se uma tendência preocupante de fragmentação e polarização.

Isto é ainda mais alarmante quando estamos a falar num novo, e bem-vindo, processo de alargamento, num contexto de crescente ameaça e confrontamento na vizinhança à leste, em vésperas de eleições para o Parlamento Europeu e com a guerra a nos bater à porta. Olhando para o passado com os olhos do presente, muito mais pertinente parece ser hoje a Declaração Schuman e seus princípios basilares de construção da paz por via da cooperação, do desenvolvimento sustentável e da união. Parece ser, portanto, altura de revisitarmos os valores fundacionais deste projeto e de olharmos para os dias seguintes à procura de definições acerca do futuro que queremos construir.

Dos desafios que hoje enfrenta uma Europa que se pretende um espaço de liberdade e de igualdade, um dos mais urgentes é o crescimento da retórica extremista e de um euroceticismo que se apresenta como iminentemente de base exclusionária, ao mesmo tempo em que perigosamente se discute uma falsa interligação entre o binómio segurança/defesa e questões demográficas relacionadas com a mobilidade e a migração. A investigação do projeto OppAttune – Countering Oppositional Political Extremism through Attuned Dialogue: track, attune, limit, financiado pela Comissão Europeia, em Portugal, revela que a combinação entre fatores materiais, como a deterioração de condições de vida e acesso a serviços e moradia, com a perceção de ameaça externa, seja materializada na figura dos imigrantes, ou representada como um “outro” entre “nós” (minorias sociais, sexuais e étnicas, grupos economicamente desfavorecidos ou excessivamente favorecidos, e até mesmo elites políticas percecionadas como corruptas), é um dos mais importantes motores de aceitação e reprodução de narrativas extremistas ao nível quotidiano.

É importante ressaltar que a construção da ameaça é baseada em perceções frequentemente sem fundamento na realidade, como, por exemplo, de que há demasiados imigrantes, que o rendimento social de inserção ocupa grande fatia do orçamento de Estado e é usufruído por uma grande percentagem de uma população tida como preguiçosa e que quer viver às custas da maioria, que a corrupção está completamente disseminada pelas instituições, pela política e pelos políticos, ou que existe uma relação entre migração e insegurança, levam, no extremo, a episódios criminosos de violência, como os que assistimos nesta semana. A desconstrução deste discurso passa por investir em informação e no combate à desinformação, quebrando com a retórica exclusionária, violenta e polarizadora, e aprendendo a lidar com o pensamento de oposição de forma não-binária e não-violenta. É, hoje, essencial que o diálogo político e social possa florescer sem pretensa de falso consenso e com a participação ativa dos cidadãos e cidadãs, que se vêem, cada vez mais, afastados da política e das suas instituições, principalmente ao nível europeu.

Como disse Robert Schuman a 9 de maio de 1950, “a paz mundial não poderá ser salvaguardada sem esforços criativos que estejam à altura dos perigos que a ameaçam”. Em tempos de eleição, é importante que se diga: ao que a investigação indica, isto passará pelo reforço das instituições, do estado de bem-estar social, pela quebra com o estatocentrismo e um foco no indivíduo e na sua relação com o Estado, a sociedade e a natureza. O retorno aos valores fundadores da União parece hoje utópico e até um exercício de criatividade, mas é essencial para salvaguardar o futuro deste projeto nos dias que se seguem.

QOSHE - O Dia da Europa e os dias seguintes - Joana Ricarte
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O Dia da Europa e os dias seguintes

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09.05.2024

O dia 9 de maio é o dia em que se comemora o Dia da Europa, em referência à Declaração Schuman, proferida no rescaldo da Segunda Guerra Mundial pelo então ministro francês dos Negócios Estrangeiros. A ideia de base da declaração é a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), precursora da União Europeia, sugerindo que a cooperação e a interdependência económica seriam uma forma de evitar um retorno ao passado de divisão e violência. De acordo com Schuman, foi “por a Europa não se ter unido [que] tivemos a guerra”.

Passados 74 anos desta declaração, e no dia em que se festeja a paz e a unidade do continente europeu, é tempo de olhar para o presente e repensar os rumos que este projeto tem tomado, assim como as suas perspetivas para o futuro. Num breve século XXI já marcado por crises e instabilidades, tanto internas quanto na vizinhança, os valores fundadores da União Europeia, nomeadamente a dignidade humana, a liberdade, a democracia, a igualdade, o Estado de Direito e os direitos humanos nunca foram tão postos em causa. Da saída do Reino Unido que nos trouxe a Europa dos 27, à (má) gestão do que nos acostumamos a chamar erroneamente de “crise” dos refugiados, passando pelos discursos estereotipados, culpabilizadores e........

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