Há uma pergunta complicada que atravessa os dias de hoje. Longe de poder ser simplesmente varrida para debaixo do tapete, tem de ser feita: as elites do capitalismo querem morrer? Se conhecem a origem e as consequências da crise climática e não a resolvem, não estão ativamente a destruir as bases materiais - um clima global estável, previsibilidade em termos de solos e água para poder haver agricultura, disponibilidade de água e habitabilidade de territórios onde vivem centenas de milhões de pessoas - e a cavar a sua própria sepultura?

A resposta é sim. As elites políticas e económicas do capitalismo estão a empurrar-nos (e a si mesmas) para o colapso. Para a nossa e a sua catástrofe.

Há quem responda que não e prossiga para a explicação de que eles têm um plano extra, que não sabemos. Usam esse argumento para ficarem em duas posições confortáveis:

- Não há alterações climáticas.

- Há uma solução que ainda vai aparecer.

No artigo que me dedica o ex-Diretor e colaborador do Expresso Henrique Monteiro, é levantada ainda uma terceira resposta: não se quereriam suicidar logo na altura em que podiam mais ganhar com a crise climática.

Debati-me com esta questão desde que percebi que existiam alterações climáticas, há quase 20 anos, e inicialmente fiquei paralisado pela falta de resposta para a mesma. Durante muito tempo observei o que ia acontecendo em termos climáticos. Talvez estivesse errado, talvez não houvesse alterações climáticas, talvez alguém estivesse a resolver nas sombras. Muitos estavam a fazer dinheiro, como sempre. Assisti à subida imparável das emissões, acompanhando a subida agora vertiginosa da temperatura, ao processo institucional das COPs, o protocolo de Kyoto, o Acordo de Paris, a lengalenga repetitiva da tecnologia que ia mas nunca resolveu as emissões crescentes.

Como é que um sistema tão articulado, global, com tantos recursos à sua disposição, empurra as suas bases - a Humanidade, a água, os solos, os recursos naturais - para o colapso? É contraintuitivo, irracional. Ainda assim, é o que está para acontecer.

A principal explicação para isto é atribuída à inércia do sistema capitalista, uma máquina tão colossal e total que conformou todos os princípios sociais, políticos e económicos às suas regras. Por isso a administração de uma empresa que não cresce e se expande é empurrada para fora, um país que não coloniza ou intensifica a exploração das suas pessoas ou recursos vê a sua governação acossada ou removida, por isso se mercantilizam todos os aspetos da nossa vida social e privada. A estas acrescento outra explicação: alienação das elites.

Para dominar a Humanidade, as elites capitalistas produziram um sem número de histórias, de narrativas, de instituições, leis, formas artísticas, think tanks, comentadores, ao longo de séculos. Chama-se hegemonia. Às vezes é óbvia, como a propaganda política, outras é mais subtil. Não é uma conspiração, apenas a história partilhada que contamos uns aos outros todos os dias.

Para reduzir entraves à expansão e à exploração, as elites criaram uma série de ideias comuns - as pessoas com outra cor são inferiores, as mulheres são inferiores aos homens, quem é rico é porque merece, pobreza é preguiça, existem mecanismos mágicos que “regulamentam” o comércio local e até global, o “selvagem” e o natural são coisas a ser dominadas. Umas são ideias novas, outras reciclagem de ideias velhíssimas. Parte destas ideias tem que ver com as próprias elites, a sua auto-imagem de excepcionalidade, mérito e inteligência. Outra parte são características mágicas atribuídas à humanidade (liderada, claro, pela elite capitalista), a sua inteligência inultrapassável e os milagres tecnológicos. No fim, como no filme Armageddon, vamos conseguir minerar um meteorito no espaço, pôr lá uma bomba atómica e detoná-la antes que colida com a terra. Palmas.

A maior parte destas ideias, criadas e propagadas para manter a estrutura de poder, naturalizaram-se com o tempo. Já nem precisam ser ditas, tornaram-se cultura. E as próprias elites, em vez de as usarem só para dominar as outras classes, passaram também a ser dominadas por essas ideias. Passaram a acreditar na papagaiada mística sobre o seu papel no mundo e na sociedade, sobre o capitalismo como a única forma de organização das sociedades humanas. Ainda o fazem apesar do seu minúsculo tempo histórico de existência e de algumas das suas próprias instituições reconhecerem que está a por em causa a subsistência da civilização global.

O teste das ideias e da cultura de manutenção do status quo chega sempre que a disrupção material colide com as histórias que a sociedade conta a si própria. É isso que está a acontecer com a crise climática. Ainda é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, mas deixará de sê-lo.

O capitalismo é uma forma de organização tão alienada que, apesar de conhecer há décadas o resultado da crise climática, os seus agentes a nível global lançaram uma quantidade gigante de energia renovável mas não retiraram os fósseis da rede, apenas acrescentaram mais capacidade produtiva e mais emissões.

O ex-Diretor Monteiro tem uma relação tumultuosa com a existência e a origem das alterações climáticas, mas as suas dúvidas não têm nada que ver com ciência. A ciência climática é clara e não vou dedicar mais linhas a explicá-la a um homem de 70 anos que passou a vida a escrever para milhões de pessoas e que agora chama burras a jovens mulheres com as quais discorda ou lunático que não percebe de alterações climáticas a uma pessoa doutorada neste assunto. Os outros argumentos são cópia-e-cola de comentários de perfis de @cryptolobos da cloaca máxima Twitter. Outro dia.

Talvez no futuro não me seja mais possível escrever em jornais como este, como o ex-Diretor sugere entrelinhas. Eu vou querer que o Henrique continue a escrever. Os seus textos e dos seus pseudónimos serão úteis para explicar a futuras gerações como quase se desistiu do futuro para manter a hegemonia, com tanto espaço do debate público ocupado por relíquias como estas.

QOSHE - Sim, os capitalistas querem suicidar a Humanidade (e o Henrique não quer saber) - João Camargo
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Sim, os capitalistas querem suicidar a Humanidade (e o Henrique não quer saber)

5 16
06.11.2023

Há uma pergunta complicada que atravessa os dias de hoje. Longe de poder ser simplesmente varrida para debaixo do tapete, tem de ser feita: as elites do capitalismo querem morrer? Se conhecem a origem e as consequências da crise climática e não a resolvem, não estão ativamente a destruir as bases materiais - um clima global estável, previsibilidade em termos de solos e água para poder haver agricultura, disponibilidade de água e habitabilidade de territórios onde vivem centenas de milhões de pessoas - e a cavar a sua própria sepultura?

A resposta é sim. As elites políticas e económicas do capitalismo estão a empurrar-nos (e a si mesmas) para o colapso. Para a nossa e a sua catástrofe.

Há quem responda que não e prossiga para a explicação de que eles têm um plano extra, que não sabemos. Usam esse argumento para ficarem em duas posições confortáveis:

- Não há alterações climáticas.

- Há uma solução que ainda vai aparecer.

No artigo que me dedica o ex-Diretor e colaborador do Expresso Henrique Monteiro, é levantada ainda uma terceira resposta: não se quereriam suicidar logo na altura em que podiam mais ganhar com a crise climática.

Debati-me com esta questão desde que percebi que existiam alterações climáticas, há quase 20 anos, e inicialmente fiquei paralisado pela falta de resposta para a mesma. Durante muito tempo observei o que ia acontecendo em termos climáticos. Talvez estivesse errado, talvez não houvesse alterações climáticas, talvez alguém estivesse a resolver nas sombras.........

© Expresso


Get it on Google Play