Antes de mais, quero dizer que as descrições do que aqui vou mencionar não são ficção, mas verdadeiras situações que me deixaram algo incomodado. Tendo uma delas sido vivenciada por mim numa rua da nossa Cidade dos Arcebispos num encontro, improvável, que tive com um desconhecido octogenário. O qual depois de me dar os bons dias me pediu, pelas alminhas, se o informava onde podia encontrar o Delegado de Saúde (DS)”.

De mãos trémulas e com dificuldade em se apoiar na bengala o ancião, todo encharcado pela chuva que caía, ouviu ansiosamente as minhas coordenadas para lá chegar. Não, sem ter aguçado a minha curiosidade em saber o porquê de tal pergunta. Até que resolveu desabafar: – “Olhe, sou viúvo, vivo na minha casinha e, para mal dos meus pecados, habitam comigo a minha filha e o meu genro porque, de repente, viram-se sem casa e sem posses para arrendarem outra. E com pena deles, franqueei-lhes as portas. Sabe como é… pai é pai e… cedi”.

– “Então e o que aconteceu?” – retorqui eu. – “Sabe? A coisa estava a ir bem, só que a dada altura os dois resolveram fazer-me uma proposta que foi a de cuidarem de mim com a condição de lhes doar o imóvel, ainda que com reserva de vida, ou seja, à minha morte passar a ser deles. Por causa disso, o meu filho mais velho e a minha nora deixaram de falar comigo”.

– “Quer o senhor dizer que está arrependido?” – perguntei-lhe. — “Pois é, eles resolveram fazer obras e destelharam a casa exatamente por cima do meu quarto, onde agora chove. Não calcula, com a roupa de cama molhada passo a noite a tiritar de frio, pois estamos no inverno. Olhe, querem é ver-se livres de mim. Tratam-me aos repelões a ver se viro um sem-abrigo.

Ao que lhe disse: – “Sendo assim, já entendi por que quer saber onde encontrar o DS. É para ir expor-lhe a dolorosa situação. E se houver um pingo de humanidade acho que irá atender ao seu caso” – disse-lhe eu. O homem agradeceu-me a informação e, perante uma aberta, lá seguiu o seu caminho, deixando-me algo pensativo.

Não refeito ainda do caso acima referido, eis que alguém me narra outra situação algo comovente: uma idosa, que vivia sozinha, sentindo-se muito doente chamou o 112 que a levou à urgência hospitalar, tendo ficado internada. Passados uns dias teve alta. E como nenhum familiar aparecia no Hospital, o médio ordenou à assistente operacional que ligasse a alguém da família para a ir buscar. E assim foi. Tendo atendido o filho da senhora que perante a informação da funcionária no sentido de levar a sua própria mãe de volta, lhe respondeu: – “ora essa! Era o que faltava. Tenho mais que fazer e não sou o único filho”.

Estas e a que se segue são uma triste e dolorosa realidade, bem elucidativa do quão insensível e sem compaixão está a ficar a nossa sociedade. Em que temos filhos a recusarem rever a sua condição futura (de idosos) na dos pais. Sinal de desmoronamento do modelo de família tradicional, muito em parte devido às barbaridades nela introduzidas por certas edeologias, cujas agendas algo modernaças procuram destruir, ainda que com a complacência de muitos de nós.

Não foi por acaso que o Papa Francisco, no mês passado, se disse indignado por os filhos não irem visitar os seus progenitores aos Lares, para onde os levaram. Coisa que já não é de agora, mas que se vai acentuando cada vez mais neste nosso tempo.

Ora, estava eu a terminar este texto quando me surge, de rompante, a notícia de um idoso a viver sozinho e que, após ter ligado três vezes para o INEM, dado estar a sentir-se mal, não foi atendido. Os vizinhos, no dia seguinte, por verem a porta entreaberta, entraram e deram com ele já sem vida.

Ao findar este dia atribulado de acontecimentos relativos à terceira idade, fiquei atónito ao saber do caso de uma idosa diabética há três dias sentada num cadeirão no corredor da urgência de um Hospital, mal alimentada, à espera de ser vista por um médico do nosso SNS.

Enfim, o que falta é mais misericórdia.

QOSHE - TRISTE E DOLOROSA REALIDADE - Narciso Mendes
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TRISTE E DOLOROSA REALIDADE

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19.02.2024

Antes de mais, quero dizer que as descrições do que aqui vou mencionar não são ficção, mas verdadeiras situações que me deixaram algo incomodado. Tendo uma delas sido vivenciada por mim numa rua da nossa Cidade dos Arcebispos num encontro, improvável, que tive com um desconhecido octogenário. O qual depois de me dar os bons dias me pediu, pelas alminhas, se o informava onde podia encontrar o Delegado de Saúde (DS)”.

De mãos trémulas e com dificuldade em se apoiar na bengala o ancião, todo encharcado pela chuva que caía, ouviu ansiosamente as minhas coordenadas para lá chegar. Não, sem ter aguçado a minha curiosidade em saber o porquê de tal pergunta. Até que resolveu desabafar: – “Olhe, sou viúvo, vivo na minha casinha e, para mal dos meus pecados, habitam comigo a minha filha e o meu genro porque, de repente, viram-se sem casa e sem posses para arrendarem outra. E com pena deles, franqueei-lhes as portas. Sabe como é… pai é pai e… cedi”.

– “Então e o que........

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