Tem faltado na política este gesto democrático de humildade, tal qual o de Moisés no Monte Horeb. A política pode ser uma actividade nobre. Acontece quando respeita a vontade popular, mas é coisa que não se vê, ou melhor, que normalmente não se vê, seja quando existe uma maioria absoluta ou quando há apenas uma maioria relativa. Exorbita-se a preferência que o povo tenha dado a uma ou a outra força partidária. Ganhar um acto eleitoral não significa dispor do direito de cortar e riscar como se não houvesse qualquer limite ou outro horizonte. A Aliança Democrática pode ter sido escolhida para governar, mas não certamente para o fazer à revelia das demais forças partidárias. A democracia não o permite. É descalçando as sandálias que a democracia acontece. Aconteceu com as questões da descida do IRS e do programa “Construir Portugal”. A decisão não podia ser tomada de forma unilateral. Era preciso negociar, olhar para a missão antes dos interesses partidários. Uma disposição para não desafiar as evidências e ir ao encontro de uma solução mais consensual. Descalço, o Governo sempre fica mais atento e disponível para escutar outras alternativas, ainda mais em atitude de respeito para com os representantes de uma faixa popular maior. Em pantufas, corre-se sempre o risco da acomodação não resolver nada ou de permitir soluções sobranceiras. O diálogo é crucial. A sobranceria agrava, quase sempre, os problemas em vez de os resolver. A intransigência não leva a lado nenhum. Vem isto a propósito de algumas declarações do lado da governação, responsabilizando os partidos da oposição e exigindo deles condições para que exista estabilidade governativa, mas também a propósito de outras atitudes em sentido contrário, como foi o caso da disponibilidade do ministro das Infraestruturas para acolher propostas da oposição, o que foi reconhecido e até elogiado como sendo um sinal de proximidade. Na verdade, um sinal quase único de como se pode e deve fazer política. Pinto Luz mostrou-se empenhado em conseguir que a proposta do programa para a habitação em Portugal tenda para a “unanimidade”, uma verdadeira raridade em política. Ainda que existam críticas, o que acontece mais à esquerda do que à direita, trata-se de uma atitude de quem descalça as sandálias e se coloca na posição de serviço para escutar e acolher contributos e integrá-los na proposta inicial do Governo.

Em contraste com esses gestos, outros comprometem a ideia de confiança com que se podia ficar do novo Executivo. Refiro-me à onda de mudanças que se têm verifica ao nível de vários lugares-chave. Não que se trate de uma situação incomum, pelo contrário, mas que nem sempre se justifica, a não ser por razões políticas. Não é de crer que o Executivo substituído tenha decidido mal na escolha de tantas personalidades que escolheu. A convicção com que o comum das pessoas fica é de que se aproveita a mudança de ciclo político para alimentar as clientelas partidárias e de que há falta de maturidade democrática. Além do mais, tantas alterações acabam sempre por prejudicar as trajectórias das instituições para não falar da perda de confiança nestas por parte da população cliente. Também aqui o Governo tem de descalçar-se, numa atitude de serviço público, para fugir à tentação de mexer em tudo o que é apetecível para os seus indefectíveis seguidores e manter nos quadros da Administração os melhores, os mais competentes, deixando de usar o Estado como se fosse uma extensão partidária. Talvez o país conseguisse um melhor desempenho e os cidadãos sentissem que as suas necessidades serão satisfeitas com estabilidade e tempestivamente.

QOSHE - Descalçar as sandálias - Luís Martins
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Descalçar as sandálias

57 0
21.05.2024

Tem faltado na política este gesto democrático de humildade, tal qual o de Moisés no Monte Horeb. A política pode ser uma actividade nobre. Acontece quando respeita a vontade popular, mas é coisa que não se vê, ou melhor, que normalmente não se vê, seja quando existe uma maioria absoluta ou quando há apenas uma maioria relativa. Exorbita-se a preferência que o povo tenha dado a uma ou a outra força partidária. Ganhar um acto eleitoral não significa dispor do direito de cortar e riscar como se não houvesse qualquer limite ou outro horizonte. A Aliança Democrática pode ter sido escolhida para governar, mas não certamente para o fazer à revelia das demais forças partidárias. A democracia não o permite. É descalçando as sandálias que a democracia acontece. Aconteceu com as questões da descida do IRS e do programa “Construir Portugal”. A decisão não podia ser tomada de forma unilateral. Era preciso........

© Diário do Minho


Get it on Google Play