Esta década de 20, para o africanista atento, tem/vê no Sahel Ocidental e Oriental, um crescente palco de disputa pós-colonial, que em quatro, cinco anos, rapidamente escalou para uma das principais “arenas deste pós-pós-Guerra Fria”, que insiste em continuar a sê-lo, desde o início da guerra na Ucrânia. Desde o início da década que a influência russa no Sahel se foi materializando, a partir de agosto de 2020, com o primeiro golpe do Coronel Assimi Goita, no Mali. Digo primeiro, porque se seguiram depois “golpes dentro do golpe”, para reforço de poderes, uma realidade replicada em 2022 no vizinho Burquina Faso e mais recentemente num outro vizinho, o Níger. Entretanto, em 2023 foram registadas tentativas de golpes na República da Guiné e na Guiné-Bissau. Esta sucessão de golpes não tem obrigatoriamente mão russa, mas desde os golpes no Mali, com os consequentes fim do G5-Sahel e do fim da Operação Barkhane, que o Grupo Wagner tem cavalgado as novas lideranças das novas Juntas Militares de três importantes e centrais países sem acesso ao mar, Mali, Burquina e Níger.

A conquista de Kidal, precisamente com os Wagner a abrirem caminho às Forças Armadas do Mali (FAMA), em novembro último, já fez surgir um novo grupo separatista, a Frente de Libertação do Sul da Argélia, uma confederação de tribos tuaregues que vivem na fronteira Mali/Argélia. Não se trata de um grupo que reivindica o habitual “Azawad Livre”, a partir do eixo Tombuktu/Gao e na voz do MNLA, o Movimento Nacional de Libertação de Azawad. Trata-se de reivindicarem o estabelecimento de um “Estado Tuaregue” na fronteira com a Argélia, a “Pontinha de Azawad”! Mais precisamente em Timiaouine já se confrontaram com o Exército Argelino, acção na qual liquidaram três soldados. É aqui que entram os especialistas locais a não considerarem estes tuaregues alinhados com o mainstream da elevada e cosmopolita Tombuktu, mas antes com grupos criminosos, cujo caos lhes torna o negócio mais propício, ou ainda a mando das “mãos invisíveis permanentemente suspensas sobre África”, a quem as contas “entre o deve e o haver” sempre obrigam a acender fogos, que depois se disponibilizam para os apagar!

Olhando no sentido oposto, do Sahel Oriental, e tendo em conta a guerra na República do Sudão, a presença russa na República Centro Africana e a crescente crispação entre o Presidente (PR) do Chade e a oposição, após o referendo a uma nova Constituição, na véspera de Natal, é possível dizer que a actual “maré alta” no Mar Vermelho, vem em boa altura, já que a massificação da monitorização do mesmo, vem travar um “olhar guloso” que os russos lançam sobre o Sudão e a Eritreia, a partir de Bamako! A presença Wagner no Sahel Ocidental certamente que provocou uma ruptura sistémica regional, mas também lhes deu a certeza de que será impossível chegarem ao Atlântico a partir da faixa saheliana. Logo, o interesse russo no Sahel, sempre foi catapultar-se para o Mar Vermelho a partir do Mali. Com os russos envolvidos na sorte da guerra na República do Sudão, a pedra central para um domínio territorial do Mali a Port Sudan, é o Chade do jovem Mahamat Déby Itno, cuja primeira medida do ano foi nomear Succes Masra, Primeiro-Ministro. No exílio desde outubro de 2022, por protestar contra a extensão por dois anos do período de transição, o PR Déby Itno, não poderia ter escolhido melhor líder da oposição, para rapidamente se incompatibilizar com o mesmo e reivindicar um reforço dos seus poderes. O Chade será um dos actores principais deste Sahel 2024, que continuará picotado por escaramuças menores, enquanto o grande jogo se disputará entre Atlântico e Mar Vermelho, entre Ocidente e os outros!

Politólogo/Arabista

www.maghreb-machrek.pt (em reparação)

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Oráculo Saheliano 2024

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05.01.2024

Esta década de 20, para o africanista atento, tem/vê no Sahel Ocidental e Oriental, um crescente palco de disputa pós-colonial, que em quatro, cinco anos, rapidamente escalou para uma das principais “arenas deste pós-pós-Guerra Fria”, que insiste em continuar a sê-lo, desde o início da guerra na Ucrânia. Desde o início da década que a influência russa no Sahel se foi materializando, a partir de agosto de 2020, com o primeiro golpe do Coronel Assimi Goita, no Mali. Digo primeiro, porque se seguiram depois “golpes dentro do golpe”, para reforço de poderes, uma realidade replicada em 2022 no vizinho Burquina Faso e mais recentemente num outro vizinho, o Níger. Entretanto, em 2023 foram registadas tentativas de golpes na República da Guiné e na Guiné-Bissau. Esta sucessão de golpes não tem obrigatoriamente mão russa, mas desde os golpes no Mali, com os consequentes fim do G5-Sahel e do fim da Operação Barkhane, que o Grupo Wagner tem........

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