Uma intervenção inopinada do Presidente da República fez o centro do debate político dos últimos dias, desfocando-o do acontecimento mais relevante dos últimos tempos: o terramoto provocado pela celebração popular do 25 de Abril de 1974, que teve uma adesão esmagadora e que talvez hoje seja seguido de uma réplica, neste Dia do Trabalhador, que pela primeira vez se celebrou em liberdade há 50 anos.

Terramoto porquê? Porque a gigantesca manifestação da semana passada em Lisboa mostrou uma disponibilidade de boa parte da população em lutar para preservar os ideias de liberdade e justiça social que a Revolução dos Cravos prometeu e que a Constituição da República de 1976 institucionalizou, até hoje, como projeto nacional. A direita mais extremista andou a cantar vitória demasiado cedo e o edifício ideológico que tentou montar de rejeição dos valores de Abril abanou, abriu rachas, arriscou mesmo deixar cair alguns pedaços.

Talvez seja à procura de um cimento de secagem rápida para reparar tais estragos que André Ventura se lançou na bizantina ideia de acusar Marcelo Rebelo de Sousa de “traição” por ter defendido que Portugal deveria liderar um processo de reparação de danos causados pelo seu passado colonial.

Imagino um qualquer clone de André Ventura a ser deputado na Assembleia Nacional do Estado Novo, eleito pelo partido único, decidir acusar o Presidente da República da época de “traição” por um dislate qualquer que lhe tivesse escapado: era preso no mesmo dia.

André Ventura, que tanto esforço faz para nos convencer de que o Estado Novo não foi tão mau como o pintam, bem pode agradecer, por um lado, ao 25 de Abril a imunidade de que os deputados agora beneficiam e, por outro lado, à cultura de liberdade de expressão, sedimentada ao longo destes 50 anos, que tornam irrelevante o artigo 328.º do Código Penal que prevê que uma ofensa à honra do Presidente da República seja punível ou com pena de prisão até três anos ou com multa proporcional.

Mais substantivo é o facto de a acusação do Chega a Marcelo Rebelo de Sousa, acompanhada pelas críticas da Iniciativa Liberal e, mais moderadamente, pelos próprios partidos da Aliança Democrática, ter transformado um debate sobre uma forma de fazer justiça a quem foi vítima da História num debate sobre a justiça que se deve fazer a quem beneficiou com essa História.

Numa segunda declaração, o Presidente da República especificou que uma reparação material aos países que conquistaram a independência de Portugal (não por benesse dos portugueses, mas depois de, todos eles, até o Brasil, terem lutado por ela de armas na mão) se dever, na sua ideia, limitar a dois temas, massacres e património roubado. Mesmo assim, o debate foi torcido, à direita, pela defesa cega de um passado histórico pouco menos que perfeito e, numa parte da esquerda, numa expiação moral de 900 anos de permanentes malfeitorias.

As duas posições estão erradas.

Julgar indivíduos do passado com os valores culturais, morais, ideológicos e políticos do nosso tempo é cometer, à partida, uma injustiça, pois tal abordagem implica que esse julgamento às ações dessas pessoas não seja imparcial e ignora o contexto que criou esses indivíduos, a sua mentalidade e os seus comportamentos.

Para dar um exemplo: quando vejo vandalizações de estátuas de supostos heróis do colonialismo compreendo as razões de quem protesta dessa maneira, mas também vejo um abuso sobre uma pessoa que não viveu no nosso tempo e, por isso, não teve oportunidade de evoluir até ao atual estágio civilizacional.

Em contrapartida, ignorar a responsabilidade coletiva, a construção social e política ao longo da vida desta nação, que levou a que esses indivíduos, nesses tempos antigos, cometessem de ânimo leve aquilo que atualmente quase todos consideramos terem sido crimes contra a Humanidade ou contra todo um povo, coloca-nos a nós, pessoas deste tempo, no papel de cumplicidade branqueadora desses crimes - e é por isso que deveríamos começar este debate de forma séria e produtiva, para fazermos uma justiça a nós próprios, não uma justiça ao passado.

A questão da reparação às ex-colónias não é um julgamento sobre a História do povo português, sobre o qual, naturalmente, temos inúmeros motivos para nos orgulharmos.
O que está em causa é o julgamento moral do povo português do século XXI, o que está em causa é saber se os valores humanitários que os portugueses dizem que hoje em dia abraçam fervorosamente são mesmo para levar a sério ou não passam de uma hipocrisia social.

Marcelo Rebelo de Sousa tem, nesta questão, toda a razão.

QOSHE - Marcelo não tem razão? - Pedro Tadeu
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Marcelo não tem razão?

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01.05.2024

Uma intervenção inopinada do Presidente da República fez o centro do debate político dos últimos dias, desfocando-o do acontecimento mais relevante dos últimos tempos: o terramoto provocado pela celebração popular do 25 de Abril de 1974, que teve uma adesão esmagadora e que talvez hoje seja seguido de uma réplica, neste Dia do Trabalhador, que pela primeira vez se celebrou em liberdade há 50 anos.

Terramoto porquê? Porque a gigantesca manifestação da semana passada em Lisboa mostrou uma disponibilidade de boa parte da população em lutar para preservar os ideias de liberdade e justiça social que a Revolução dos Cravos prometeu e que a Constituição da República de 1976 institucionalizou, até hoje, como projeto nacional. A direita mais extremista andou a cantar vitória demasiado cedo e o edifício ideológico que tentou montar de rejeição dos valores de Abril abanou, abriu rachas, arriscou mesmo deixar cair alguns pedaços.

Talvez seja à procura de um cimento de secagem rápida para reparar tais estragos que André Ventura se lançou na bizantina ideia de acusar Marcelo Rebelo de Sousa de “traição” por ter defendido que........

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