Como cidadão, o que penso sobre política, na ideologia e no que deveria ser a sua prática, distancia-me irremissivelmente de Marcelo Rebelo de Sousa. Como jornalista, porém, admirei sempre a transparência com que ele expunha e explicava os rendimentos que auferia, as relações profissionais que estabelecia, os contactos pessoais que promovia ou aceitava.

Marcelo entendeu desde muito cedo que a vida pública de um político num regime democrático e com imprensa livre implicava a exposição de alguns aspetos da sua vida privada. Ele foi, de facto, pioneiro neste comportamento entre a classe política portuguesa e isso merece, da minha parte, respeito e admiração.

É por isso espantoso ver alguém que se autodisciplinou numa ética difícil, durante décadas, ter falhado tão redondamente no caso do alegado favorecimento dado a dois bebés, num tratamento de 4 milhões de euros concedido por suposta "cunha" metida no Hospital de Santa Maria, que terá passado por um e-mail enviado pelo filho à Presidência da República.

Nuno Rebelo de Sousa perguntou, oficialmente, numa mensagem enviada ao homem que está encarregado pelo artigo 120 da Constituição de garantir o regular funcionamento das instituições democráticas, se era possível tratar naquele hospital as crianças de um casal amigo ou conhecido, nascidas no Brasil, mas cidadãs portuguesas.

O que Marcelo Rebelo de Sousa deveria ter respondido ao filho era que, precisamente por ele ser filho do Presidente da República, não podia usar a Presidência para obter aquela informação.

Na conferência de imprensa que na segunda-feira Marcelo Rebelo de Sousa deu para explicar o assunto foi dito que o e-mail mereceu um tratamento absolutamente igual às centenas ou milhares de pedidos que a Presidência recebe, seguindo o procedimento protocolar rotinado para estas solicitações.

Admitindo que factualmente esta é a verdade, há aqui, parece-me, uma falha ética por parte de Marcelo Rebelo de Sousa, confessada pelo próprio.

Um familiar direto de um Presidente da República, de um primeiro-ministro, de um ministro ou de qualquer outro governante não pode ser tratado como um cidadão vulgar quando pede uma informação ou mete um "pedido" ao familiar que ocupa um lugar eleito no poder político. Ele deve ser tratado de forma muito especial: ele deve ser, sem hesitação, discriminado negativamente.

Qualquer resposta, seguimento, passagem de informação ou reencaminhamento para outro organismo que um político nessa situação faça a um contacto de um familiar direto, entra imediatamente numa zona de hipotético conflito de interesses e corre mesmo o risco de preencher os requisitos para uma investigação judicial de tráfico de influências.

Mas, mais importante do que isso, deveria fazer parte do ADN ético de qualquer político, por muito que o coração lhe peça o contrário, que os familiares diretos não-políticos não tenham qualquer contacto com o seu trabalho executivo ou institucional. Mesmo se forem políticos, as fronteiras de separação de atividade entre os dois devem estar bem definidas e combinadas.

O que Marcelo Rebelo de Sousa deveria ter respondido ao filho era que, precisamente por ele ser filho do Presidente da República, não podia usar a Presidência para obter aquela informação, não só para defender a Presidência de uma suspeita, mesmo se infundada, mas também para defender a generalidade das instituições democráticas da acusação de se submeterem aos interesses particulares de uma casta privilegiada que tem acesso facilitado aos poderosos deste país.

Não compreendo como Marcelo, com o passado e a experiência que tem, não percebeu isto.

Este caso é o fim político de Marcelo Rebelo de Sousa?

Ainda falta perceber muita coisa, incluindo o papel do Governo no assunto, mas, mesmo se se confirmar claramente uma "cunha" presidencial, mesmo se o favorecimento das gémeas prejudicou terceiros, mesmo se outros que mereciam tratamento igual não o tiveram, mesmo se se gastaram escusadamente 4 milhões de euros dos contribuintes, há uma grande diferença entre este caso e qualquer outro caso de corrupção ou tráfico de influências que esteja na nossa memória: a razão de tudo isto foi a de ajudar duas bebés doentes, e esta componente de compaixão humana, natural em todos nós, alivia, atenua e relativiza o juízo crítico da opinião pública - e essa nuance garante, se o próprio quiser, a sobrevivência política do Presidente da República.

Agora, a autoridade presidencial ficou claramente diminuída para dar lições de moral a um Governo, como aconteceu quando Marcelo pediu a demissão de João Galamba, em maio passado.

Jornalista

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Marcelo acabou para a política?

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06.12.2023

Como cidadão, o que penso sobre política, na ideologia e no que deveria ser a sua prática, distancia-me irremissivelmente de Marcelo Rebelo de Sousa. Como jornalista, porém, admirei sempre a transparência com que ele expunha e explicava os rendimentos que auferia, as relações profissionais que estabelecia, os contactos pessoais que promovia ou aceitava.

Marcelo entendeu desde muito cedo que a vida pública de um político num regime democrático e com imprensa livre implicava a exposição de alguns aspetos da sua vida privada. Ele foi, de facto, pioneiro neste comportamento entre a classe política portuguesa e isso merece, da minha parte, respeito e admiração.

É por isso espantoso ver alguém que se autodisciplinou numa ética difícil, durante décadas, ter falhado tão redondamente no caso do alegado favorecimento dado a dois bebés, num tratamento de 4 milhões de euros concedido por suposta "cunha" metida no Hospital de Santa Maria, que terá passado por um e-mail enviado pelo filho à Presidência da República.

Nuno Rebelo de Sousa perguntou, oficialmente, numa mensagem enviada ao homem que está encarregado pelo artigo 120 da Constituição de........

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